Dois cadernos aos tablets
A plataformaformização da rede pública levanta dúvidas e questões sobre a qualidade do ensino e o interesse das empresas na educação do país
Por Giovanna Accioli, Gustavo Radaelli e Henrique Giacomin
![[Gabriella Gonçalves Accioli/Acervo Pessoal]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/11/IMG-20241108-WA0013-768x1024.jpg)
Durante o período da pandemia de Covid-19, diante da necessidade de adaptações da educação ao ensino à distância, o Brasil deu início ao processo de plataformização de seu sistema educacional. Inicialmente, a inserção de conteúdos online no aprendizado dos alunos da rede pública ocorria devido à necessidade de distanciamento social, porém, mesmo após a pandemia, o Governo Federal continuou com a implantação dos serviços de educação online.
Na rede estadual de São Paulo, ferramentas digitais ocupam cada vez mais espaço no cotidiano escolar. Segundo a pesquisa da TIC Educação, a pandemia acelerou o uso de chamadas de vídeo e dispositivos digitais: se em 2019 apenas 14% das escolas públicas usavam alguma ferramenta de ensino a distância, em 2020 esse número saltou para 80%, mantendo-se alto no cenário pós-pandemia. Hoje, 84% das escolas estaduais possuem ao menos um dispositivo disponível para os alunos, superando até as escolas particulares (74%).
A plataformização do sistema educacional, juntamente com o Novo Ensino Médio, abre debates sobre o impacto dessas mudanças no aprendizado, comunicação e futuro dos alunos. Entre as problemáticas, desigualdade no acesso às tecnologias, qualidade do conteúdo, terceirização e padronização da educação são as principais questões levantadas. Os aplicativos acabam sendo encarados como uma terceirização e padronização do ensino.
Da sala de aula ao “Super BI”
Diversas das atividades que compõem as notas dos alunos são realizadas por meio das ferramentas digitais, as quais também contém os conteúdos de das avaliações, como é o caso da plataforma “Prova Paulista”. No ensino médio da rede estadual, são adotadas 14 diferentes plataformas (ver quadro).

Embora a disponibilidade de plataformas pareça uma solução a princípio, estudos como os feitos pelas pesquisadoras Renata Barbosa e Natália Alvez e publicações como as da Revista Movimento, evidenciam a insatisfação com a implementação dos novos sistemas. Cobrança pelo uso das plataformas e uma adequação forçada ao digital por parte dos professores são algumas das reclamações desse processo.
Valéria Paes, professora da rede estadual de ensino e mestre em ensino de ciências e matemática pela Unifesp (Universidade Federal de S. Paulo), destacou que acha positiva a disponibilidade de material digital pronto para o uso, com sugestões de atividades interativas e que abordam o conteúdo das avaliações; mas também apontou a constante necessidade de complementação, adaptação e correção de erros conceituais e informações rasas ou limitadas.
As plataformas também se conectam ao Super BI, que sistematiza as informações dos alunos e oferece indicadores sobre as instituições de ensino. As escolas passaram a se sentirem obrigadas a cumprirem metas dentro desse sistema, colocando mais pressão sobre as gestões escolares e os docentes a aderirem sistemas que não foram devidamente implementados.
“O uso (das plataformas) se dá pela obrigatoriedade, e não com o objetivo de que as ferramentas possam auxiliar a aprendizagem dentro do propósito oferecido pelo material. Recentemente, algumas das minhas turmas declararam que as aulas expositivas tradicionais são mais interessantes e produtivas do que os recursos digitais”
Valéria Paes, professora da Rede Estadual
Quem digitalizou isso aqui?
Embora o governo realize consultas públicas por meio de questionários online próprios via links de acesso, para embasar suas decisões mais relevantes, surgem dúvidas relacionadas ao aprofundamento pedagógico. As alunas do nono ano da rede pública, Maria Fernanda e Luísa, relatam que o conteúdo disponibilizado nos aplicativos são rasos e infantilizados. Elas também reclamam que as plataformas exigem a realização de tarefas que pouco contribuem para a sua formação e se sentem pressionadas a realizar as atividades, além de ocuparem seu tempo fora da escola.
“Agora a gente não precisa pensar, porque já vem tudo mastigado para gente. Quando tem alguma questão nos slides, no próximo já vai ter a resposta. Ainda tem professores que nem passam a questão e vão direto para a resposta”
Luisa, aluna do nono ano da rede pública
Renato Feder, atual Secretário de Educação de São Paulo, incentiva a plataformização, alegando os benefícios da mudança no sistema educacional. Porém a introdução das tecnologias também está relacionada a contratos com empresas responsáveis pelo seu desenvolvimento e aplicação.
A Multilaser firmou, em dezembro de 2022, um contrato de R$200 milhões com a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, que segue em vigor para o fornecimento de 97 mil notebooks para a rede pública estadual.
Renato Feder foi CEO da Multilaser de 2003 a 2018 e detém 28,16% de ações por meio de outra empresa.
Dados e Soberania Digital
O uso de plataformas de empresas privadas e estrangeiras também levantam dúvidas relacionadas à proteção dos dados dos usuários e aos interesses de quem produz os aplicativos. Em entrevista à Rádio Câmara, no dia 29/10, Rafael Evangelista, doutor em Antropologia, e conselheiro do CGI (Comitê Gestor da Internet no Brasil) explicou um pouco sobre essa relação.
“As plataformas não são intermediárias neutras. Embora possam parecer, elas estabelecem e conformam as relações, ocupando o lugar de atores que deveriam definir como essas interações devem ocorrer”
Rafael Evangelista, conselheiro do CGI
Segundo ele, embora as tecnologias facilitem o acesso ao conhecimento, elas podem impor uma abordagem padronizada e superficial na educação. Por essa razão, discussões pedagógicas devem incentivar a criação de plataformas próprias do país capazes de atender as necessidades da população e garantir a autonomia na educação.