Vozes de periferia: a importância do incentivo à cultura
Mesmo com aumento significativo no número de investimentos em projetos culturais na cidade de São Paulo, a cultura periférica continua lutando por sua valorização
Por Clara Viterbo Nery, Daniela Gonçalves e Davi Alves
![Estúdio de gravação da produtora musical REComunidade [Imagem: Clara Viterbo Nery/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Imagem-capa-Vozes-de-periferia-1024x768.jpeg)
A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo anunciou, no ano de 2024, um orçamento de mais de R$ 1 bilhão – exatamente R$1.015.576.874,04 – destinados para a implementação de política cultural na cidade. Comparado aos anos anteriores, a verba destinada à cultura mais que dobrou entre os anos de 2021 e 2024, uma conquista significativa para as atribuições dessa secretaria municipal. No entanto, mesmo com o aumento expressivo, outros projetos de incentivo cultural não obtiveram o mesmo acréscimo.
Programas de incentivo à cultura podem ser vinculados à população de diversas maneiras, como subsídios, bolsas e apoio a instituições culturais diversas. Projetos como esses são essenciais para a remoção de barreiras financeiras e promoção da diversidade cultural, mas, além disso, são muito importantes para fortalecer o intercâmbio entre centros e periferias.
Vivenciado por tantos anos, é nítido como a desigualdade social e os baixos investimentos tornaram quase inacessível produzir cultura no país, especialmente em zonas periféricas. Expressões culturais consideradas mais formais e elitizadas, como orquestras, sempre foram mais contempladas pela verba pública, enquanto a arte nas periferias seguia marginalizada e desvalorizada. A promoção da democratização cultural surge como uma forma de equiparar os investimentos em todas as áreas da cultura, de forma que seria possível aumentar a valorização da cultura periférica.
A promoção de incentivos é imprescindível para com que artistas e grupos consigam erguer seus projetos, especialmente entre crianças e jovens. Para jovens de periferia, que constantemente têm sua existência rebaixada, negada ou excluída, a música e arte podem servir como instrumento para recuperação da autoestima e reconhecimento de sua existência. O jovem periférico vê na arte uma forma de se expressar e de ser ouvido, de contar a sua história e ter sua realidade mudada, muitas vezes, através da manifestação cultural. Além disso, o investimento não é apenas para os artistas, mas também para a cultura local e a sociedade, que se beneficiam daquele aparato social através das atividades que ali ocorrem.
Falta de informação é uma barreira para fomento
Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado um crescente interesse e investimento em arte e cultura. Um movimento que pode ser notado através do aumento dos orçamentos vinculados à cultura, não apenas reflete uma valorização por parte das políticas governamentais, como, também, uma conscientização crescente sobre o papel do setor cultural no país, especialmente da cultura periférica que tem grande apelo popular. Projetos com relevância social, periférica e comunitária têm ganhado mais espaço entre os editais de cultura, o que permite o crescimento dessa cultura.
O REComunidade, produtora musical localizada no Jardim São Remo, é um dos exemplos de ações que cresceram graças aos investimentos. Fundado em 2021, o projeto surgiu com o objetivo de incentivar jovens a investir na carreira musical e contou com o apoio do Programa de Valorização a Iniciativas Culturais, o VAI, que foi criado para apoiar coletivos culturais de regiões com precariedade de recursos e equipamentos.
Sobre o projeto de incentivo, Robson Souza, um dos sócios da produtora musical, diz que o apoio “fez a diferença” na compra dos equipamentos e na elaboração do estúdio de gravação. “Você conhecer um projeto de incentivo como o programa VAI faz a diferença, fortalecendo vários coletivos por aí. Mas poderia ser mais recursos para poder conseguir patrocinar a maioria dos coletivos da periferia porque tem muita coisa bacana”, afirma.
![Rafael Santos, Jucimar Silva e Robson Souza, sócios da REComunidade [Imagem: Clara Viterbo Nery/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Imagem-2-socios-Vozes-de-periferia-1024x696.jpeg)
Apesar da importância dos incentivos, as burocracias envolvidas nos processos de editais que destinam apoio financeiro dificultam a participação da população periférica nos programas. “É uma burocracia lascada que o cara da periferia, muitas vezes, não vai ter paciência de fazer”, diz Robson. Além das diversas regras que, por muitas vezes, estão além da compreensão dos participantes que costumam ter baixa escolaridade, na hora da candidatura, a maioria dos editais também leva em consideração tempo de CNPJ ativo, outro obstáculo para a população. A falta de instrução correta e acesso à informação dificulta com que jovens periféricos possam ser contemplados com os investimentos, fazendo com que muitos desses desistam e perpetuem a ideia de que essas atividades culturais são para “gente rica”, como acrescenta Robson.
O REComunidade é um dentre diversos projetos que, mesmo com as dificuldades, segue fazendo o seu papel em incentivar esses jovens a produzir sua música e arte. Robson adiciona que é importante instruir as pessoas para que todas possam conquistar uma oportunidade, sem distinção de merecimento ou competição “A gente tem que mostrar para a galera da comunidade, ensinar como se inscrever em projeto, nos editais, para poder fomentar essa atividade, não precisa estar competindo”.
Orçamento da cultura em São Paulo não privilegia periferia
Dentre inúmeros projetos financiados pelo governo, o programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) é apenas um deles, mas que, mesmo assim, possui grande importância. Criado no ano de 2003 por meio da Lei Municipal nº 13.540/200, o VAI é de responsabilidade da prefeitura de São Paulo e tem como objetivo apoiar atividades artísticas e culturais, com prioridade para jovens de baixa renda que se encontram em regiões desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Desde 2014, o programa funciona em duas modalidades: na primeira, os projetos selecionados podem receber um aporte de até R$54.037,70, já no segundo, os coletivos culturais que já tenham pelo menos dois anos de atuação ou tenham sido contemplados na primeira modalidade, no caso de aprovação, o apoio é de até R$ 108.075,39.
No ano de 2024, na sua 21ª edição, 950 projetos foram contemplados pelo VAI, sendo 466 na primeira modalidade e 484 na segunda, com um investimento de R$12.984.000,00. Quando visto de forma isolada, o valor pode parecer exorbitante, no entanto, este representa apenas uma parcela mínima dentro de todo orçamento cultural. A critério de comparação, o VAI representa aproximadamente 1,27% do orçamento total da Secretaria Municipal de Cultura e, mesmo com sua grande importância para os projetos de periférica, seu crescimento orçamentário não acompanhou o da Secretaria.

Entre os anos de 2021 e 2024, o orçamento da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo teve um aumento aproximado de 103,8%, partindo de R$498.298.096,35 para 1.015.576.874,04. Paralelamente, em ritmo menos acelerado, o valor destinado ao programa VAI apresentou um acréscimo próximo de 54,57% no mesmo período, quando seu orçamento foi de 8.400.000,00 para mais de doze milhões. Esse movimento demonstra uma valorização de iniciativas culturais e artísticas no município, mas, ainda, em velocidade reduzida.
Em comparação, as expressões culturais mais formais, embora continuem ocupando uma parcela expressiva do orçamento, tendem a ser mais contidas nos próximos anos. O Theatro Municipal, por exemplo, é um equipamento público prioritariamente ligado ao aperfeiçoamento da dança, da música e da ópera no Brasil, práticas popularmente conhecidas por serem mais eruditas. O espaço de destaque que ele ocupa no orçamento público oferece um parâmetro de comparação quanto à importância dele para à cultura, mas demonstra, também, a crescente tendência de valorização aos incentivos das iniciativas culturais periféricas nos últimos anos em relação a gêneros comumente considerados elitizados.
Mesmo com a redução de suas verbas, o Theatro Municipal, em 2024, ainda ocupa 14,41% de toda a verba da Secretaria de Cultura, enquanto projetos periféricos recebem uma parcela muito menor. Equiparar os orçamentos e, ao mesmo tempo, não promover a desvalorização de nenhuma forma de arte é um desafio constante, mas a cultura tem se mostrado promissora de que a ampliação da diversidade cultural e do orçamento seja recebido nos próximos anos, com o aumento do teto da Secretaria.