São Sebastião um ano depois: sobreviventes da Vila Sahy e Barra do Una recontam a tragédia e o que mudou
Chuvas intensas que atingiram o litoral norte no carnaval de 2023, deixaram mais de 3 mil desabrigados e 64 mortos. Governo atrasa entrega de obras de melhoria na região
Por Fernanda Franco, Samuel Amaral e Jean Silva
![Vista da praia Bora Bora, São Sebastião, em junho de 2024 [Imagem: Fernanda Braz/Acervo pessoal]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Foto-1_Fernanda-Braz-918x1024.jpg)
Para os moradores de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, a madrugada do dia 19 de fevereiro de 2023 ecoa com vivacidade em suas memórias e no seu cotidiano há mais de um ano. Em menos de 24 horas, as fortes chuvas que atingiram a região deixaram mais de 3 mil pessoas desabrigadas e 64 mortos. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 626 milímetros de chuva desaguaram sobre o município, número muito acima dos 246,2 previstos para todo o mês.
Mas a tragédia não terminou com o fim das chuvas, ainda hoje os bairros periféricos mais afetados – Vila do Sahy e Barra do Una – possuem marcas visíveis da destruição que mudou a vida dos moradores. Foram 600 imóveis afetados: alagados, cobertos por lama ou destruídos pelos deslizamentos.
Este é o caso de Jessica Tatyane, cabeleireira autônoma e ex-moradora da Vila Sahy, que foi soterrada junto com a família no que um dia foi o seu lar. Nascida em Recife, veio para São Sebastião quando tinha apenas três anos de idade, construiu toda a sua vida na Vila Sahy. O que levou anos se perdeu em instantes, tanto o seu salão como a sua casa foram desabados.
Ela relembra que naquela madrugada chuvosa todos acordaram assustados quando uma árvore quebrou a janela do quarto, logo em seguida a lama invadiu o espaço e levou a casa e uma vida. Das 11 pessoas que estavam na residência, seis conseguiram escapar e cinco ficaram soterradas, entre elas Tatyane e sua avó, Maria Anunciada da Silva, a qual que veio a óbito devido ao acidente. “Minha avó morreu nos braços, ela estava abraçada comigo”, conta ela emocionada.
![Local onde ficava a casa de Tatyane [parede branca na foto] na Vila Sahy. “O morro parou na minha casa”, relembra ela [Imagem: Jessica Tatyane/ Acervo pessoal]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Foto-2_Jessica-Tatyane-1024x460.jpeg)
Tatyane foi a última a ser socorrida dos escombros, “eu fiquei das três até umas seis, sete horas da manhã soterrada, foi quando o dia clareou para conseguir ser resgatada pelos moradores”. Ela e o pai foram os mais prejudicados no acidente, ficaram mais de uma semana internados.
Atendidos pelo SUS, o pai teve que fazer uma cirurgia nos tendões em São Paulo, capital, e ela ficou cerca de seis meses na fisioterapia, por conta da perna quebrada e dos nervos lesionados nos braços. Os demais membros da família tiveram principalmente escoriações no corpo.
Sem casa e impossibilitada de trabalhar, Tatyane diz que, até ser amparada pelo governo, contou principalmente com a ajuda de amigos, parentes e da igreja para sobreviver àqueles tempos de desolação.
“De ajuda imediata foi tudo por conta da própria população mesmo. Assim que saímos do hospital ficamos cerca de 15 dias na casa de amigos e depois eu mais um mês na casa do meu primo, na Baleia Verde”
Jessica Tatyane
Ela contou que a ajuda que tiveram da prefeitura veio quase dois meses depois. “Ficamos na casa do meu primo até quando o CDHU ligou perguntando se a gente queria ir para Bertioga, porque as primeiras unidades que saíram eles deram prioridade para o pessoal de lá”, explica.
Em Bertioga, ela e sua família ficaram por 11 meses – sem pagar aluguel, água e luz – até sair o apartamento prometido pelo estado, no Bairro Baleia Verde, com mais de um ano de atraso.
Tatyane também teve ajuda de ONGs depois de 4 meses da tragédia. Ela recebeu dois cartões com dinheiro vindo de doações para cada família desabrigada. O primeiro, no valor de 8.500 reais da Verde Escola; e o segundo de 2.500 da Gerando Falcões.
![Deslizamento na Vila Sahy [Imagem: Jessica Tatyane/ Acervo pessoal]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Foto-3_Jessica-Tatyane-1024x460.jpeg)
Tais auxílios do governo não foram uma realidade para todos os afetados pelas chuvas. Fernanda Braz, mãe e moradora da Barra do Una, teve a sua casa completamente alagada. Ela recorda que às 22h começou uma chuva muito forte e às 23h50 a casa já estava metade submersa.
A família de Fernanda também estava reunida naquela noite devido a um mês de falecimento do seu avô, de quem herdara a casa. Vendo que o nível da água só aumentava, começaram a subir os móveis para o andar de cima da casa, numa tentativa de salvar a maior parte deles.
“Foi algo que aconteceu muito rápido. A gente percebia que a água só aumentava e aumentava, e aí foi quando a gente passou por essa situação. Um mês depois de ter perdido o meu avô e também um mês que eu estava morando nessa casa”
Fernanda Braz
Quando a água chegou na cintura, eles saíram da residência e foram para uma parte mais alta do bairro, a igreja ‘Rocha Church Barra do Una’, onde Fernanda é secretária e por isso tinha a chave. Após passarem a noite por lá, no dia seguinte ela relata que ficou espantada quando viu notícias da região e o estado que ficou a sua casa. “Eu mandei uma mensagem para minha vizinha, que mora num sobrado, e ela me mandou uma foto da minha casa… só dava pra ver o telhado. Perdi tudo, perda total”, relembra.
Nascida e criada em São Sebastião, Fernanda conta que esta foi a primeira vez que viu uma enchente de tamanha proporção no bairro. Ela só conseguiu entrar na casa novamente 5 dias depois, e levou mais 20 para conseguir limpar completamente. “Fiz umas três faxinas para conseguir limpar a casa de verdade. O cheiro era muito forte por causa da lama e dos bichos”, conta ela.
“Essa situação traumatizou bastante todo mundo. Tem muitas pessoas que moram nessa vila e que depois acabaram nem comprando muitas coisas, exatamente para não acabar perdendo. Fica aquele receio ‘será que vai acontecer de novo?’ e qualquer chuva que que dá as pessoas ficam receosas”
Fernanda Braz
Fernanda morou na igreja por cerca de um mês, o tempo que levou até conseguir mudar para uma nova casa no mesmo bairro, onde mora até hoje. “Eu não queria voltar para a outra casa. Eu tinha acabado de comprar todas as minhas coisas novas e acabei passando por isso. Então estamos reformando a casa e pretendemos alugá-la quando terminar”, comentou.
Mesmo tendo perdido tudo, Fernanda não foi ajudada em auxílios pelo governo porque sua residência não se encontrava em área de risco. A única ajuda que teve do governo veio da Defesa Civil que, junto com a Prefeitura de São Sebastião, distribuiu produtos de limpeza para as pessoas que foram afetadas pela enchente, assim que ela conseguiu limpar a sua casa.
Ela conta que durante todo o tempo em que esteve morando na Rocha Church, e até alguns meses depois, contou exclusivamente com doações particulares e de ONG’s.
Além de receber ajuda, Fernanda também ajudou muitos outros moradores — por meio da igreja — que estavam na mesma situação que ela. “O que me ajudou bastante foi ter ajudado outras pessoas. Foi muito de olhar para a realidade do que tá acontecendo, no meio do caos, e conseguir fazer uma coisa boa, algo bom”, conta.
Ambas as moradoras ressaltaram que em nenhum momento receberam qualquer aviso da Defesa Civil sobre os riscos de chuva naquele dia. Hoje, pelo contrário, recebem com frequência.
Áreas de risco
Das 64 mortes, 52 foram na Vila Sahy. O bairro, formado em meados dos anos 1990 por imigrantes nordestinos em busca de oportunidades de trabalho no litoral de São Paulo, fica próximo à rodovia Rio-Santos e é habitado majoritariamente por funcionários de casas de veraneio, pousadas e hotéis da praia Barra do Sahy, do outro lado da rodovia.
Ocupada principalmente por uma população negra, de baixa renda e de alta vulnerabilidade social, a Vila é considerada uma região irregular por estar em área de proteção ambiental. Antes da tragédia, o Grupo de Atuação Especial de Proteção ao Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público de São Paulo, já tinha ajuizado 42 ações civis públicas para decretar intervenções em 52 áreas de São Sebastião com deficiências de infraestrutura e riscos aos moradores.
As áreas afetadas estão perto do mar, a alguns quilômetros para dentro do continente, além da orla, local onde turistas aproveitam as belas praias do litoral norte e se hospedam em hotéis de luxo. No fim do dia, a calmaria do mar lhes dá uma noite memorável de sono, enquanto os trabalhadores dos resorts e hospedagens sobem o morro para suas casas em local de risco e de ocupação ilegal, cerca de 102 ainda estão em processo de regularização de acordo com a Prefeitura de São Sebastião.
Fernanda e Tatyane contam que a situação ainda não voltou inteiramente à normalidade. As marcas da destruição ainda estão visíveis nos morros com as longas faixas de lama, desfigurando a beleza da natureza que antes existia. Como em São Sebastião as praias são divididas por morros, da areia ou do mar se consegue ver claramente o local em que teve o desabamento.
“A gente acaba sempre relembrando, não só lembrando na nossa cabeça, mas vendo as marcas que ficaram. É muito visível isso no nosso dia a dia e quando vamos para outros bairros. É uma vista impactante”
Fernanda Braz
Sob os pés dessa população o solo é instável. A Serra do Mar é um grande maciço de rochas com uma fina camada de terra que, pela ação gravitacional em períodos de intensa chuva, pode deslizar sobre a parte rochosa e causar um fluxo extremamente aquoso e concentrado. Este por sua vez, atinge altas velocidades e leva tudo em seu caminho. Nessa situação, as casas, árvores, espaços de vivência e memória da população, foram morro abaixo.
![O mapeamento das áreas de risco na região já haviam sido feitos há anos. [Imagem: Reprodução/Ministério Público]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/unnamed-2-1.png)
Antes do desastre, as casas e vielas da Vila Sahy não estavam em boa condição. A comunidade ocupa uma área de 110.612m² e não tem abastecimento de água potável, nem ligação elétrica. Em 2009, a prefeitura “congelou” a expansão das ocupações por meio de um Termo de Ajuste de Conduta, para assim tentar evitar o crescimento dos terrenos irregulares.
Após a tragédia, no dia 25 de fevereiro de 2023, o governo do Estado de São Paulo, publicou um decreto no Diário Oficial para desapropriar 10, 6 mil metros quadrados na Vila Sahy com o fim de construir moradias populares.
O problema é que os habitantes de áreas mais abastadas se opõem ao erguimento desses edifícios. Em 2020, pelo menos 400 conjuntos habitacionais deixaram de ser construídos, devido à forte oposição feita por moradores de condomínios de luxo, segundo a análise realizada pela área de Clima e Cidade do Instituto de Referência Negra Peregum.
O prefeito Felipe Augusto (PSDB), em entrevista ao UOL News, informou que aproximadamente 500 residentes de classe média e alta de São Sebastião se mobilizaram junto à prefeitura para impedir a construção dessas moradias. Por esta razão, a prefeitura cancelou um projeto com a Caixa Econômica Federal e a população de baixa renda continua nos morros e áreas de risco.
Procurados pelo Portal Central Periférica, o atual prefeito e o vice-prefeito e pré-candidato à prefeitura, Reinaldinho Moreira, não responderam à reportagem até o fechamento desta edição.
A recuperação
No final do ano passado, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) solicitou a remoção de 70% das casas da Vila Sahy, com base em estudos de empresas privadas e da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Estado (CDHU). Essa ação afetaria 893 famílias e foi justificada por novos riscos de deslizamentos de terra na região. Moradores da Vila protestaram.
O Ministério Público de São Paulo e a Defensoria Pública Estadual contestaram esse laudo e apontaram que a área designada para demolição era exageradamente ampla. As famílias não foram removidas.
Uma das respostas do governo estadual ao desastre foi o investimento em conjuntos habitacionais. Até o momento, 704 unidades habitacionais foram construídas nos bairros de Baleia Verde e Maresias, com um investimento total de 260 milhões de reais.
![Vista de cima do conjunto Baleia I [Imagem: Divulgação/Governo de SP]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/unnamed-3.png)
Outros dois conjuntos habitacionais foram prometidos. O primeiro será construído no bairro Topolândia, com uma estimativa de 256 unidades e previsão de conclusão para dezembro de 2025. A CDHU planeja selecionar a empresa responsável pela construção até o fim do ano. O segundo conjunto, localizado no Camburi, terá 324 unidades e deve ser entregue em maio de 2027.
Em nota ao G1, a prefeitura disse que realiza obras na região de drenagem e pavimentação por R$123 milhões. Com a instalação de telas italianas, construção de muros e barreiras, e outras medidas de contenção, como solo grampeado com concreto projetado e plantio de vegetação, a gestão diz que espera prevenir futuros problemas relacionados a grandes volumes de chuva em curtos períodos de tempo.
O governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu a instalação de sirenes de alerta, moradias populares e obras de infraestrutura para prevenir novas catástrofes na cidade do litoral norte de São Paulo.
![Muros de contenção têm sido construídos para evitar desastres futuros [Imagem: Reprodução/Paulo Pinto/Agência Brasil]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/unnamed-4.png)
Apesar das obras, há resistência por parte de alguns moradores em sair da região. Segundo Wagner Ventura, funcionário do Fundo Social de São Sebastião, o principal motivo para as pessoas optarem por continuarem na região, mesmo com todos os riscos anunciados, é o apego. “Por ser uma Vila antiga, eles têm muito essa questão de tradição. Passa de pai para filho e assim por diante, tem essa ‘hereditariedade’ do imóvel”, comenta ele.
Um problema mais profundo
“Na prática, não há um projeto de preservação ambiental. Quando desastres como os de São Sebastião e do Rio Grande do Sul acontecem, a mobilização ocorre apenas para fazer doações pontuais às pessoas afetadas”, conta Letícia Chagas, co-deputada estadual de São Paulo pelo PSOL.
De 2018 a 2024, os investimentos na reconstrução no Rio Grande do Sul foram sete vezes maiores do que os destinados à prevenção de desastres. 518,2 milhões foram gastos em ações de socorro e resposta a desastres, comparados a apenas R$81,2 milhões destinados à prevenção, conforme levantamento do G1 e da TV Globo.
A deputada relata: “um projeto de lei que foi aprovado no governo anterior, mas quem de fato deu vazão foi o governo Tarcísio, vende grandes pedaços de terra do Estado de São Paulo com o preço de banana para grandes agricultores“.
Ela refere-se à Lei 17.557/22 que foi aprovada pelo Legislativo do estado em 22 de julho de 2022 e criou o Programa Estadual de Regularização de Terras. Esse permite a venda de terras devolutas, ou seja imóveis do Estado que não tenham utilidade ou que estejam ocupados irregularmente.
“O agronegócio de hoje é um dos principais responsáveis pelo impacto climático no Brasil. Esses problemas têm relação direta com a exploração da terra para a monocultura. Tem a ver com a exploração da terra a partir do desmatamento, que é a forma como o agronegócio funciona no Brasil”, aponta Letícia.
A fronteira agrícola do Brasil cresceu 50% entre o período de 1985 e 2022, de acordo com o Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas).
Em 1985, a agropecuária ocupava 22% do território brasileiro, totalizando 187,3 milhões de hectares. Quase quarenta anos depois, essa área aumentou para 282,5 milhões de hectares, representando um terço do território do país. Além disso, o Brasil passou nos últimos anos por recordes de desmatamento, principalmente durante a gestão Bolsonaro.
“São muitos muitos litros de água utilizados para a pecuária. É muita área no Brasil desmatada para produzir gado. É muita área no Brasil que é desmatada para produzir soja”, explica a deputada.
Conforme informações do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), ao longo de 2023, foram observados 1.161 eventos de desastres hidrológicos ou geohidrológicos no país. Este número representa um aumento de 30% em relação ao ano anterior e é o maior já registrado desde o início do monitoramento em 2012. A expansão da fronteira agrícola é apontada por especialistas como causador desses eventos de chuva extrema e de desastres como o de São Sebastião.