Quem oprime não educa
Uma educação formadora e libertadora pode ser opressora? Como as reformas nas escolas públicas minam a formação do jovem de baixa renda
Por Lara Cuin, Gabriela Braga, Marcelo Donegá e Rafael Rodrigues
O governo do estado de São Paulo anunciou a transformação de cerca 100 escolas estaduais em unidades cívico-militares, com previsão de início no segundo semestre de 2025. Sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas em maio de 2024, o programa divide a gestão entre um núcleo civil, que será responsável pelo currículo e gestão pedagógica, e um núcleo militar formado por policiais militares da reserva, que ficarão encarregados da disciplina, segurança e atividades cívicas.
Profissionais da educação argumentam que mesmo que o núcleo militar esteja restringido a cuidar de atividades limitadas, tais esferas inseridas no ambiente escolar requerem conhecimentos específicos ligados às áreas de pedagogia e licenciaturas, como psicologia infanto-juvenil, metodologias e didática de ensino. A administração de um espaço militar não é comparável nem pode ser transposto de maneira automática para a administração escolar. Além disso, não há qualquer garantia de que não haja interferência de tal núcleo em questões escolares do núcleo pedagógico.
Segundo um levantamento do jornal “Folha de S. Paulo”, 74 das 100 escolas escolhidas já tinham desempenho acima da média da rede estadual no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Além disso, 90 delas atendem estudantes de classe média-baixa, com acesso a internet e celular e, em sua maioria, famílias com pais que concluíram o ensino médio, contrariando a justificativa dada pelo Governo do Estado de que o programa priorizaria escolas com baixo desempenho e maior vulnerabilidade social — o que pode mascarar um resultado positivo falso.
Pressão internacional e problema civilizatório
Em junho deste ano, o Comitê de Direitos da Criança da ONU recomendou que o Brasil proíba a militarização das escolas públicas com o argumento de que o modelo viola direitos fundamentais e compromete uma educação de qualidade e emancipada. Críticos também apontam para a inconstitucionalidade do programa e questionam sua legitimidade democrática. Em 2024, o Tribunal de Justiça de SP suspendeu o programa temporariamente.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação publicou uma análise que classifica a militarização como um equívoco pedagógico e, principalmente, como uma ameaça civilizatória que viola a liberdade de aprender e ensinar, pluralismo, gestão democrática e direitos das crianças e adolescentes. O estudo aponta que o regime rígido pode gerar, ao invés de ordem, “irritabilidade” e agressividade entre os estudantes, além de haver uma tentativa de apagamento do ensino sobre o período da ditadura militar no Brasil.
O Relator Especial Bernard Duhaime destaca: “Constatei com grande preocupação as medidas adotadas durante o governo anterior para retirar referências à ditadura dos currículos escolares e para censurar ou mesmo criminalizar os professores que educam sobre esses assuntos, acusando-os de doutrinação. Lembro que a educação em direitos humanos e a transmissão de memória sobre violações passadas de direitos humanos são um dever do Estado de acordo com os padrões internacionais”.
Barreiras ao ensino superior
Além da militarização das escolas paulistas, o problema nas escolas públicas se agrava com a reforma do ensino médio (Lei 13.415/17), que reduz drasticamente as horas destinadas às disciplinas básicas, como matemática, português e e história, e as substitui por itinerários formativos eletivos, muitas vezes desconectados dos currículos tradicionais e que distanciam os estudos das matérias cobradas dos vestibulares. Educadores alertam que essa flexibilização prejudica os estudantes de classes vulneráveis, pois torna o acesso à universidade ainda mais difícil. Hoje, os estudantes de escola públicas se encontram com um currículo defasado e descontextualizado, enquanto escolas particulares, em sua maioria, não aderiram totalmente à reforma e seguem preparando seus alunos para os vestibulares.
A combinação da militarização com a reforma cria um quadro preocupante, onde escolas públicas sob regime militar limitam o espaço para debate, crítica e liberdade de expressão, além da fragmentação curricular que restringe as chances de jovens de baixa renda alcançarem o ensino superior. O resultado é um ciclo de exclusão: menos acesso a universidades públicas, maior dependência de trabalhos precarizados e a perpetuação de desigualdades raciais e sociais e o impacto recai principalmente sobre estudantes negros, periféricos e que, comumente, dividem suas horas diárias entre o estudo e o trabalho. Esses têm suas vidas afetadas, enfrentando trajetórias escolarizadas interrompidas, menor apoio pedagógico e um processo de perpetuação de desigualdades.
A conjunção da militarização com o modelo fragmentado do ensino médio amplia a dificuldade do acesso de alunos de baixa renda ao ensino superior. Essa exclusão estrutural reforça a desigualdade, justamente num momento em que políticas afirmativas tentam contrabalancear esses efeitos.
