Por um clima justo: o desafio de incluir as periferias na agenda verde
Com a COP 30 no horizonte, especialistas e movimentos periféricos cobram políticas que unam justiça social e sustentabilidade e coloquem os mais vulneráveis no centro da adaptação climática
Por Brunno Praes e Davi Milani
Às vésperas da COP 30, quando o Brasil se prepara para mostrar ao mundo sua liderança climática, moradores das periferias pelo país enfrentam a face mais dura da crise ambiental: falta de água, calor extremo e enchentes recorrentes. Enquanto o governo fala em transição ecológica e neutralidade de carbono, milhões de brasileiros seguem fora das políticas de adaptação por falta de planejamento urbano e investimento em infraestrutura, num retrato da desigualdade que transforma o clima em mais um marcador social.
Belém se prepara para sediar a COP 30
Neste ano, o Brasil sediará, entre os dias 10 e 21 de novembro, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP 30), em Belém do Pará. A Conferência das Partes (COP) é o maior evento global das Nações Unidas para discussão e negociações intergovernamentais sobre mudança climática. Este encontro reúne líderes mundiais, cientistas, organizações não governamentais, representantes da sociedade civil, de governos, do setor privado e de organizações internacionais para discutir ações de combate à mudança climática.
Em declaração ao GOV.BR, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirma que a realização da conferência no coração da Amazônia será a oportunidade de transformar discursos em ações concretas, liderando pelo exemplo e inspirando mudanças em escala global. “A COP 30 será uma oportunidade única para que o Brasil reafirme seu compromisso e protagonismo global na agenda climática, demonstrando que é possível liderar pelo exemplo, com responsabilidade e justiça social e ambiental. E espero que os brasileiros compreendam que nosso papel vai além das negociações”, reforça a ministra.
Do discurso global à adaptação local
Em entrevista ao Central Periférica, Inamara Mélo, diretora do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima (DPAR) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), comenta que, a partir dos objetivos e metas alcançados na Conferência de Dubai — COP 28 — em 2023, a cúpula do MMA atualizou o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças do Clima (PNA), que trata da promoção do desenvolvimento sustentável amplo, de políticas e fortalecimento de capacidades entre os diversos níveis da federação, dos estados e dos municípios.
“Esse conjunto de ações e medidas deve preparar o país para o enfrentamento da crise climática até o ano de 2035. O PNA não pode ser um plano apenas federal, precisa integrar estados e municípios. A agenda de adaptação acontece muito localmente. É preciso, então, apostar no federalismo climático”, afirma a diretora do DPAR.
Desigualdades que agravam a crise
Segundo ela, 84% dos municípios brasileiros são afetados por desastres climáticos, sendo mais de 324 milhões de pessoas impactadas. “Isso dá mais do que a população brasileira, porque, por vezes, uma pessoa é afetada mais de uma vez”. O Centro de Síntese em Mudanças Ambientais e Climáticas (Simaclim) publicou o relatório Cidades Verdes-Azuis Resilientes, destacando que os desastres, que provocam cada vez maior instabilidade social, não são causados pelo evento climático em si, mas pela interação desse evento com a vulnerabilidade do território, das pessoas e do ambiente construído exposto. Segundo o texto, o Brasil tem 12.348 favelas e comunidades urbanas, com 16,5 milhões de pessoas. Mais de 8,2 milhões delas vivem em áreas sujeitas a inundações, enxurradas e deslizamentos. Apesar desse cenário, metade dos municípios não têm plano diretor atualizado e, mesmo entre os que têm, há pouca integração com planos climáticos.
Inamara afirma que o Brasil se encontra em um conjunto de problemas — como fome, pobreza, miséria e falta de segurança alimentar — que, diante de um contexto de emergência climática, ficam ainda mais sérios. “Isso fica muito visível no contexto da mudança do clima. A marginalização em relação a gênero, raça e classe social permeia essa luta de enfrentamento à mudança do clima. Os mais vulneráveis são os mais pobres.”
Segundo ela, no início do diagnóstico para a elaboração do PNA, notou que a vulnerabilidade do país se amplia frente às mudanças climáticas, diante de fatores não climáticos. “Não poderia partir de outro ponto que não fosse trazer o eixo da justiça climática para o centro deste nosso debate. Nós entendemos que o desenvolvimento sustentável caminha passo a passo com a justiça climática e vice-versa”, ressalta Inamara.
De acordo com o MapBiomas, o Brasil tem 123 mil hectares de áreas urbanas em regiões reconhecidamente suscetíveis a inundações, deslizamentos, secas, estiagens e outros desastres climáticos. O levantamento também identificou 425 mil hectares de áreas urbanas nessa situação de potencial vulnerabilidade a enchentes, mas que ainda não são oficialmente reconhecidas como áreas de risco. As favelas também tendem a ser mais vulneráveis a desastres ambientais, como deslizamentos de terra e inundações, o que pode fazer com que as famílias que ali moram percam tudo da noite para o dia — além de problemas estruturais, como cortes de água.
“Quando a gente olha para o risco climático, não deve olhar apenas para a chuva, para a seca, para a inundação, para o deslizamento. A gente tem que olhar de que maneira as populações estão expostas a este risco, a essas alterações climáticas. A gente precisa alterar causas mais profundas da vulnerabilidade. E isso significa, então, trabalhar com uma adaptação transformacional e não uma adaptação”, afirma a diretora do DPAR.
Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que mais de 140 mil pessoas vivem no Complexo da Maré, em uma área de menos de quatro quilômetros quadrados. Além da alta densidade populacional, a estrutura habitacional nas favelas também contribui para a retenção de calor, pois as casas tendem a ser construções com pouca ventilação e com materiais como telhas de zinco e paredes finas de alvenaria, sem isolamento térmico.
Inamara salienta que, durante o processo de atualização do Plano Nacional de Adaptação às Mudanças do Clima, deu importância aos diversos atores presentes na sociedade e aos impactos que podem sofrer.
“O PNA teve como sua primeira ação justamente uma oficina sobre juventude climática. Buscamos ouvir as diversas pessoas, os diversos movimentos, grupos sociais. Tivemos um trabalho de tornar este processo de fato participativo. Ao longo dos últimos dois anos foram muitos eventos realizados no país, tanto consultas públicas, como por meio digital. Também com a realização de plenárias territoriais, ouvindo grupos específicos, trazendo grupos de mulheres marisqueiras, quilombolas, indígenas… Enfim, trouxemos para esse debate setores que não estavam acostumados a lidar com esse tema. Então, isso foi colocado como um ponto importante para orientar os planos setoriais, para que a gente tivesse medidas de políticas públicas incluídas nessa perspectiva de reduzir os impactos, olhando prioritariamente para os grupos vulnerabilizados”
— Inamara Melo
Dados apresentados pelo IBGE mostram que as desigualdades por cor ou raça se expressam também no acesso a serviços de saneamento, o que, além das implicações relativas à saúde e às condições de vida, traz impactos patrimoniais. Cerca de 8,1% da população vive em favelas no território brasileiro — mais de 16 milhões de pessoas, de acordo com o Censo Nacional. A maioria dos moradores se identifica como negra (pretos e pardos). As temperaturas nesses bairros são até 8 graus Celsius mais altas que as dos bairros vizinhos, segundo investigação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, feita em Paraisópolis, a maior favela de São Paulo. Bairros ricos têm mais áreas verdes e melhor planejamento urbano. Além disso, seus moradores tendem a ter mais recursos para adquirir ar-condicionado e podem pagar custos mais elevados de energia elétrica — refletindo a desigualdade térmica, um dos aspectos do que é conhecido como racismo ambiental.
“Na Estratégia Nacional de Adaptação, há um capítulo específico que reconhece o racismo ambiental como agenda a ser trabalhada na falta de adaptação à mudança climática. Existe um plano específico, entre os 16 planos setoriais de adaptação — setoriais e temáticos — um específico sobre igualdade racial e combate ao racismo, que trata da pauta do racismo ambiental de forma mais consistente. A gente tratou de apresentar isso como eixo tanto transversal ao plano, quanto com planos específicos para abordar esta agenda de enfrentamento ao racismo no Brasil”, certifica a diretora do DPAR.
O papel da COP 30: inclusão e mobilização
Inamara conta que o Ministério do Meio Ambiente desenvolveu o Adapta Cidades, no âmbito do programa Construindo Cidades Resilientes, que tem como objetivo integrar a União com estados, municípios e parceiros de iniciativas internacionais, pesquisadores e financiadores, para ampliar o apoio técnico, produzir o mapeamento de riscos e os diagnósticos territoriais, além de capacitar os gestores públicos e captar recursos financeiros.
“O Brasil conta com a Lei nº 14.904, que define as diretrizes para elaboração das estratégias de adaptação, tanto no âmbito federal, estadual e municipal, e lá diz que é o plano nacional que define as diretrizes para estados e municípios. Então, essas diretrizes que eu contei aqui do plano clima precisam agora ser seguidas por estados e municípios. Elas orientam uma agenda municipal. Nós precisamos do engajamento das cidades e dos estados para que essa transformação aconteça.”
“O Adapta Cidades vai chegar a 581 municípios, representando cerca de 25% da população brasileira. Mas a gente tem como estimativa, como meta do Plano Clima, que até 2035 a gente possa alcançar todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, pelo menos, com estratégias locais de adaptação. Então, a gente espera que o Brasil consiga avançar e adotamos a COP como essa oportunidade de engajamento e de esclarecimento da sociedade”, reitera Inamara.
No entendimento pessoal da diretora, esta edição do evento é uma oportunidade de engajamento de todos os brasileiros. “Aproveitamos aqui para fazer essa convocação. Tanto o governo nacional e federal quanto estados, municípios, setor privado, movimentos da sociedade civil e a academia precisam se engajar — basicamente, um pacto social e político que nós precisamos fazer para que haja a implementação de uma agenda estruturada e estratégica para o país, de redução dos impactos da mudança do clima.”
Nas principais metas do governo federal para a COP 30 está apresentar uma pauta para reduzir as emissões de gases de efeito estufa na ordem de 59% a 67% até 2035. Para implementar essa ambiciosa meta, o país tem poucas reservas econômicas, como consta no Plano Plurianual (PPA). Entretanto, Inamara tem a expectativa de que o Congresso Nacional se sensibilize e priorize as diretrizes do PNA como parte da política pública.
“Este plano traz o detalhamento daquilo que já consta no orçamento, mas ele vai além, trazendo a carteira de projetos e mostrando o que deve ser prioritário para o financiamento da habitação no país. Nós temos uma grande expectativa sobre a geração deste apoio político. Isso precisa chegar ao Congresso Nacional, isso precisa conquistar o apoio dos governadores, dos prefeitos, da sociedade, do setor privado, para que, de fato, a gente consiga implementar uma agenda robusta de adaptação”
— Inamara Melo
Inamara certifica que a oportunidade de realizar a COP na Amazônia, no Brasil, é algo representativo, principalmente considerando que o país recebeu a primeira das convenções 33 anos atrás — a Eco 92. “A expectativa que temos é que essa COP vai ser muito mais participativa do que as últimas edições, de longe. A gente, que vem participando de outras COPs, de outras conferências das partes, vê que essa conferência no Brasil de fato deve atrair novas vozes, novos olhares e um grande processo de mobilização dos atores da sociedade civil, dos diversos grupos. Eu acho que essa COP será a COP da implementação e também uma COP inclusiva, justamente por propiciar a cúpula dos povos indígenas, a participação e a fala dos diversos atores de uma forma muito mais vibrante do que a gente já ouviu em qualquer outra edição das COPs que tivemos a oportunidade de participar”, explica Inamara.
Entre promessas e urgências
Enquanto o Brasil se prepara para receber o mundo em Belém, o desafio é garantir que o protagonismo climático não se restrinja aos palcos oficiais da COP 30. A crise ambiental, sentida primeiro e com mais força nas periferias, cobra respostas que unam justiça social e sustentabilidade. A promessa de uma “transição ecológica justa” só se concretizará quando políticas de adaptação, infraestrutura e planejamento urbano alcançarem os territórios que hoje vivem entre a seca e a enchente. O país que se apresenta como potência verde precisa, antes de tudo, cuidar do Brasil invisível — aquele que resiste, diariamente, nas margens do mapa.
