O respeito que não vem de casa se ensina na escola
A instituição escolar como lugar de convivência plural e acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+
Por Ana Alice Coelho, Leticia Yamakami, Mariana Ricci e Vito Santos
![[Imagem: Vito Santo/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/capa-educacao-lgbt-1024x678.jpg)
Diz o ditado: a educação vem de casa. Entretanto, se assim o é, nada mais justo do que adicionar mais conteúdo ao dizer popular e complementá-lo preenchendo as lacunas deixadas pelos preconceitos enraizados nas gerações mais velhas. A educação pode até vir de casa, mas a LGBTfobia se combate na escola.
O papel social da instituição escolar na formação intelectual de jovens e adolescentes é sempre alvo de debates, principalmente quando se fala de um ensino básico deficitário em conteúdo.
Porém, é necessário pensar que um ensino que não tem como objetivo o combate às discriminações e a eliminação das desigualdades sociais também é incompleto e traz mazelas difíceis de serem solucionadas nas fases posteriores da educação e da vida.
É com essa preocupação em construir uma escola que busca lutar contra preconceitos, que a professora Aline, da Escola Estadual Doutor Ubaldo Costa Leste, iniciou um projeto que visa garantir um espaço de pluralidade e segurança para estudantes LGBTQIAPN+ e ir de encontro a estigmas relacionados a essa população.
“O meu projeto é voltado à diversidade sexual e de gênero, como uma forma de prevenção de violência dentro desse ambiente”, informa a docente. A iniciativa faz parte do Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas (PODHE), que tem por objetivo o monitoramento das ações voltadas para os direitos humanos nas escolas estaduais de São Paulo.
Um lápis na mão e uma ideia na cabeça
Para Aline, o projeto vem como resposta a uma realidade de distanciamento social ocasionado pela pandemia, que potencializou preconceitos pela falta de convivência e de intervenção da escola. “Junto com o retorno [às aulas], nós tínhamos várias questões importantes na escola, como a dificuldade de convivência e de resolução de conflitos, a baixa autoestima e as mais diversas violências em decorrência de preconceitos”, diz ela.
Ao encarar as desavenças, o PODHE, juntamente ao corpo docente da Doutor Ubaldo, pensou em uma solução para a manutenção dessas problemáticas. Seus professores escreveram e submeteram o projeto ProEduca, em prol da melhoria da educação, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Um ano depois, veio a boa notícia: a aprovação, seguida de um processo de formação dos docentes integrantes para trabalhar as temáticas abordadas de forma competente e desenvolver atividades a respeito dessas.
O debate sobre a inclusão e o pertencimento da população LGBTQIAPN+ no ambiente educador é reforçado pela professora ao salientar que “o preconceito surge da falta de conhecimento e de uma cultura, muitas vezes. E aí, a escola é justamente esse espaço democrático e amplo em que nós trazemos os mais diversos pontos de vista”.
O diálogo construído através da escuta
Durante as aulas, o projeto não busca apenas mediar conflitos de LGBTfobia. Entender de onde e como surge o pensamento discriminatório também é de suma importância. A partir disso, surgem as oficinas de escuta ativa. Aqueles que, diferente do que muitos pensam, transmitem conhecimento sobre o assunto são os próprios alunos.
Abarcando tanto jovens que fazem parte da comunidade quanto outros que não fazem, coletivamente cria-se um espaço acolhedor e maduro. “Acho que, além do diálogo, é essencial a questão da escuta. Para que a gente consiga intervir de uma forma mais efetiva, sem imposição, que seja realmente uma construção”, afirma a educadora. Mesmo que no começo da implementação das atividades nem todas as falas dos discentes fossem do agrado dos professores, eles reforçam que, aos poucos, as turmas se desenvolveram e caminharam até uma recepção positiva do projeto. “Vamos notando sim resultados que partem deles mesmos. Então, eles vêm ‘ai, prô, eu nunca tinha pensado dessa forma’. É uma construção”.
![A parceria ProEduca e PODHE colabora para a manutenção de um espaço seguro para os adolescentes que estão em processo de formação de opiniões e identidades [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/foto-1-educacao-lgbt-1024x678.jpg)
A cumplicidade na diversidade
Para os discentes que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+, a ação nas escolas é ainda mais significativa, já que importantes aspectos de descobrimento e aceitação tomam espaço no ambiente escolar. “Nessa questão da representatividade, ela é importante nos mais diversos espaços, porque traz justamente essa questão de acolhimento, de identificação e de pertencimento”, diz a docente.
Dentro do projeto, os estudantes conseguem, além de expressar seus pensamentos, se olhar e se entender como seres humanos dignos de respeito. “Ter um espaço em que eles se sintam seguros para ser quem eles são, eu acho que é importantíssimo, é essencial”.
Ao trazer o diálogo para as salas de aula, Aline acessa os alunos e cria elos fundados em respeito. Segundo a educadora, “aqui a gente trabalha o adolescente além dos conteúdos. A gente trabalha projeto de vida”.
Construindo essas conversas, o ambiente escolar se transfigura de lugar acadêmico para escola de valores, influenciando as ações dos adolescentes mesmo fora das paredes da classe. “Então esse vínculo com os estudantes é importante, é um vínculo de confiança”, completa Aline.
A professora acredita que o ambiente escolar deve ser visto como um local de solução de conflitos, pois para uma coletividade escolar harmônica e coerente é necessário que todos sejam vistos como parte do conjunto. “E acho que o objetivo é este, ampliar cada vez mais para que nossa escola seja um espaço de acolhimento, de escuta, de cuidado, de prevenção de violência”.
Enfrentando o preconceito com a educação
Apesar de toda cautela de Aline ao endereçar-se às temáticas de sexualidade e gênero, a iniciativa sofre com a resistência de pais, alunos e colegas de trabalho. Conversas que mencionam ou aprofundam tópicos voltados à comunidade LGBTQIAPN+ não ocorrem com muita frequência nos lares brasileiros e, portanto, acabam enfrentando grande resistência quando abordados em ambientes escolares.
São diversas as razões pelas quais o projeto enfrenta resistência. O fundamentalismo religioso é apontado como a principal razão para pais e alunos não concordarem com a iniciativa. Agrega-se, então, uma nova camada de dificuldade ao combate de preconceitos, principal intuito do projeto.
A pesquisadora aponta que as crianças e adolescentes chegam na escola com concepções preconceituosas e estigmatizadas provindas de suas famílias. Eles reproduzem falas e comportamentos desrespeitosos que ocorrem em seus próprios lares.
Desconstruir ideias previamente sedimentadas nas cabeças desses jovens é um dos principais desafios que Aline e seus colegas engajados no projeto enfrentam. Mas eles não desistem. “Eu acho que é o nosso papel social, de educador, político também, é trabalhar essas temáticas que são de extrema importância”, pontua a professora.
Gênero e sexualidade são temáticas estudadas na psicologia por anos e, mesmo com a pluralidade de visões em relação a eles, pesquisadores concordam que são inerentes à trajetória de vida das pessoas.
Quando um assunto não é abordado de forma construtiva e coerente, mas enfaticamente repelido como pensamento, formam-se indivíduos confusos e reprimidos, segundo a teoria freudiana da psicanálise.
A diversidade existe. Pessoas LGBTQIAPN+ existem. De uma forma ou de outra, os jovens vão entrar em contato com essas temáticas que por muitos são consideradas tabus. Como um ambiente de formação cognitiva e comportamental, as escolas mostram-se mais do que importantes para ensinar que ser diverso é ser humano, e ser humano é viver livre de preconceitos. “As pessoas são diversas e que bom que a gente é diverso. A gente precisa respeitar essa diversidade, porque nós somos tão complexos, e não cabemos só dentro de uma caixinha”.