O povo e o estádio de futebol: experiências dissonantes?

Modalidade, considerada a paixão nacional, enfrenta impasses na busca pela democratização do acesso às arquibancadas

Por Gabriel Albuquerque, João Lucas Casanova e Nina Nassar

 

Foto: Nina Nassar/Central Periférica

O futebol é o esporte essencialmente brasileiro. Paixão nacional, referências a craques e clubes permeiam a cultura do país. E também o bolso.

Segundo a pesquisa “Gastos com Futebol”, encomendada pelo Serasa, o consumo do esporte afeta as economias de 61% dos brasileiros. No dado, inclui-se desde a compra de produtos licenciados e camisas, até ingressos para assistir aos jogos em estádios. Do total de pessoas que afirmaram gastar com futebol, 81% o fazem todos os meses.

O levantamento ouviu 2.940 pessoas, de diferentes faixas etárias e regiões do Brasil, em junho de 2025. Para 61% dos torcedores, ir ao estádio se tornou um luxo dissonante da realidade vivida pela população em geral. Apenas 23% afirmaram ver jogos presencialmente como sua principal opção de assistir às partidas. 

Em entrevista ao Central Periférica, André Guerra Ribeiro, presidente da Mancha Alvi Verde, critica a ganância dos dirigentes do Palmeiras, que não dão prioridade para a torcida organizada na venda dos ingressos. Para ele, o interesse econômico dos clubes por vezes se sobressai à determinação legal de que “toda torcida organizada tem que ficar num determinado setor” e nele ter prioridade de compra.

A percepção de distanciamento da experiência “ao vivo” por parte significativa da população se dá ao passo que novas formas de acompanhar o time do coração surgem. Hoje, canais de TV aberta e a cabo, plataformas de streaming e Youtube marcam o consumo do esporte dentre os brasileiros. Ainda assim, nada parece substituir a vivência in loco, especialmente entre os mais apaixonados.

Em análise realizada em 2017 por Cesar Grafietti, atual consultor da CBF, o economista apresenta dados comparativos para entender se o valor dos ingressos apontava para uma elitização do público nos estádios. Apesar das intensas transformações do esporte no Brasil, com a presença cada vez maior de arenas em detrimento dos tradicionais estádios, uma alternativa mais moderna e segura, Grafietti constata que não é possível afirmar que o futebol está sendo elitizado somente pelo valor do ingresso. 

Comparando o percentual de comprometimento da renda em momentos do passado e em 2017, Grafietti chega a conclusão que, resguardadas as variações de preço causadas pela importância dos jogos, a diferença não se mostra tão gritante. “Utilizando o percentual de comprometimento de 1974 (5,1%) e aplicando sobre o salário mínimo de 2017, o preço do ingresso seria de R$ 48,00, ou seja, apenas R$ 13,00 mais barato que a média praticada hoje”, afirmou em sua análise.

No entanto, a percepção pública segue na direção contrária. E o valor do ingresso é apenas um fator nessa imensa equação, que leva em conta ainda percepções quanto ao transporte, o custo de vida em geral, além da efetividade da integração social dos grupos que venham a frequentar esses ambientes.

Segundo André Ribeiro, no Allianz Parque, casa do Palmeiras, o Geral Norte, setor com menos cadeiras e mais barato, criado para supostamente abranger segmentos populares da torcida, “não cumpre esse papel de não elitização, porque é um espaço totalmente pequeno. Cabe uma, duas mil pessoas numa arena de 45.000; não dá nem 5% do estádio”. Essa divisão se mostra mesmo desconectada da realidade da imensa maioria palmeirense, já que 48% da torcida vive com uma renda familiar de até dois salários mínimos, de acordo com pesquisa da Datafolha.

Os protestos contra preços abusivos nos estádios

Desde a popularização dos planos de sócio-torcedor, no qual os fãs podem pagar mensalmente ao seu clube do coração para receber benefícios exclusivos, os preços dos ingressos comuns têm ficado cada vez mais caros para compensar o desconto que os sócios-torcedores possuem.

Se os preços estão exagerados até para os torcedores dos grandes centros urbanos, para quem vive nas periferias a situação é ainda pior. Com preços médios que podem chegar a até R$ 250,00 mensais, os planos para sócio-torcedores contribuem para excluir as populações periféricas dos estádios.

Esse aumento desproporcional no preço dos ingressos não tem agradado as torcidas, que se manifestaram contra a prática abusiva em diversos momentos. Em maio, a torcida organizada Gaviões da Fiel, do Corinthians, acendeu diversos sinalizadores durante a partida contra o Novorizontino, na Copa do Brasil, como forma de protesto aos preços abusivos, obrigando a arbitragem a parar o jogo até que os sinalizadores fossem apagados. 

No Rio de Janeiro, a torcida do Flamengo também manifestou sua insatisfação com o preço dos ingressos cobrados na partida contra o Juventude, na 4ª rodada do Campeonato Brasileiro, que custavam a partir de R$ 80. Com direito a cantos e xingamentos contra o presidente do clube, e até mesmo a uma faixa escrita “ingresso caro, arquibancada vazia”, os torcedores deixaram claro que não compactuam com a visão elitista que os clubes adotaram para precificar seus jogos e mercadorias.

Em protesto organizado pela Mancha Alvi Verde, com o apoio de todas as uniformizadas, a torcida do Palmeiras foi ao Allianz Parque para protestar contra o aumento dos preços e também pela falta de contratações eficientes do clube. André Ribeiro enxerga que os clubes, atualmente, não querem um torcedor e, sim, um espectador, um consumidor. 

“Só que tem momentos que o torcedor faz falta, né? Aquele cara que vai para incentivar o clube, para fazer festa para o clube, para apoiar o clube, né? Que sabe que isso ajuda no resultado esportivo, que em jogos importantes faz falta”. Completa, ainda, mostrando que o “torcedor” que as gestões dos times querem é “um cara que vá lá, que compre uma camisa, que consuma dentro do estádio, assista o jogo, não reclame de nada e tá tudo certo”.

Parte dos clubes que se posicionaram contrários às medidas de elitização, o Grêmio acionou o STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol) contra a prática de preços abusivos no jogo contra o Juventude no primeiro turno do Brasileirão. Enquanto os ingressos para os setores da torcida mandante custavam a partir de R$ 40, os do setor visitante estavam sendo vendidos à R$ 200, o que deixou a diretoria do Grêmio e seus torcedores extremamente incomodados. 

Um levantamento feito pelo Lance! Biz calculou o ticket médio — a renda bruta de dividida pelo número de pagantes —  de cada um dos times da série A do Campeonato Brasileiro nas primeiras rodadas da competição, em 2025. Palmeiras (R$ 80,06), Vasco (R$ 72,80) e Flamengo (R$ 70,76) ocupam as primeiras posições do ranking, enquanto Mirassol (R$ 28,00), Ceará (R$ 19,30) e Fortaleza (R$ 12,42) possuem os tickets médios mais baratos.  

Sobre a situação de todos os clubes, o presidente da Mancha afirma: “Em relação a diminuir o valor do ingresso, eu enxergo que a gente só vai conseguir isso se conseguir colocar na cabeça do torcedor que o que a gente paga é muito caro. Então, isso aí você consegue através de que forma? Infelizmente, é só protestando”.

André Ribeiro acrescenta, ainda, que em jogos com resultados adversos e baixo desempenho da equipe, com a torcida elitizada que se tem dentro do estádio hoje, “fica difícil você conseguir motivar o elenco e criar uma atmosfera diferente para reverter esse resultado. Se pega a torcida em outros momentos, duas, três décadas atrás era um pouco diferente”.

No “esporte do povo”, então, a presença das populações periféricas, que constituem a base das torcidas, faz muita falta.