Na Luz, surge um templo que louva a música

ONG Santa Marcelina faz o gerenciamento da EMESP Tom Jobim e do Programa Guri, criando uma paisagem sensível e extremamente musical, em meio à imensidão da cidade

Por Amanda Nascimento, Clara Zamboni, Lorenzo Souza e Maria Luiza Negrão

Concerto da Orquestra de Cordas do Guri [Imagem: Jean Ricardo/Acervo Pessoal]
Concerto da Orquestra de Cordas do Guri [Imagem: Jean Ricardo/Acervo Pessoal]

Nas periferias é comum que o primeiro aprendizado de jovens com relação à música ocorra em ambientes como igrejas ou rodas de samba, casualmente. Projetos de educação musical, entretanto, são capazes de encaminhá-los à profissionalização.

A Organização Social de Cultura Santa Marcelina é sediada no bairro da Luz, região central da cidade de São Paulo. A instituição é responsável pela administração de dois programas estaduais de educação musical: o Guri — dedicado à iniciação musical de crianças e adolescentes na capital, interior e litoral paulista —  e a Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim), que visa a profissionalização na carreira musical e está no mesmo prédio que a ONG. Além disso, o Theatro São Pedro, localizado na Barra Funda, também é gerido pela ONG desde 2017.

A fachada em tons claros e arquitetura clássica da Santa Marcelina tem, em seu interior, paredes coloridas e alunos dedicados [Imagem: Clara Candiotto Zamboni/Central Periférica]
A fachada em tons claros e arquitetura clássica da Santa Marcelina tem, em seu interior, paredes coloridas e alunos dedicados [Imagem: Clara Candiotto Zamboni/Central Periférica]

Anualmente, milhares de jovens entram nos programas da Santa Marcelina para adquirir ou aperfeiçoar seus conhecimentos musicais. São mais de 70 mil vagas no Guri, de entrada livre — destes, segundo pesquisa produzida pela ONG em 2023, 70,84% dos estudantes da capital ou Grande São Paulo pretendiam seguir carreira na música.

Já com relação aos ex-alunos da EMESP Tom Jobim, que visa oferecer uma educação mais aprofundada, a maioria deles trabalha na área musical, sendo 45,82% dos entrevistados cantores ou instrumentistas.

 O prédio da Santa Marcelina que, originalmente, era um hotel, abriga hoje salas de aula e auditórios para a EMESP. Fomos recepcionados por Julian, que nos mostrou as dependências do edifício e nos apresentou aos entrevistados. Durante o período em que estivemos lá, o ambiente esteve sempre preenchido pelo som dos estudantes em período de provas semestrais tocando seus instrumentos em ensaios ou apresentações.

A EMESP Tom Jobim

A princípio chamada Universidade Livre de Música (ULM), a EMESP abre suas portas em 1989, no Bom Retiro, com Tom Jobim no cargo de reitor. Antes da Santa Marcelina Cultura assumir sua gestão em 2009, a escola passou por uma série de mudanças, como a transferência da sede para a Luz e a troca de nome da instituição. 

Camila Bomfim, coordenadora pedagógica e professora da EMESP Tom Jobim, foi a primeira entrevistada pela Central Periférica e explica que a função do instituto é formar músicos. A maioria dos estudantes – cujas idades variam de 8 a 26 anos – chegam com algum conhecimento prévio que buscam aperfeiçoar. “Os cursos de formação têm práticas de instrumento ou de canto, aulas teóricas, de coral, de estrutura e de harmonia”, explica Bomfim.

Os estudos são divididos em 3 ciclos, cada qual possui aspectos vinculados à educação musical em diferentes níveis, o primeiro é o básico até atingir o aprofundamento necessário para a graduação. Cada ciclo possui, em média, 3 anos e a escola oferece a opção de especialização após sua finalização. Todas essas etapas têm processos seletivos para a entrada.

Alunos da EMESP Tom Jobim. [Imagem: Robs Borges/Acervo Pessoal]
Alunos da EMESP Tom Jobim [Imagem: Robs Borges/Acervo Pessoal]

Segundo a coordenadora pedagógica, esses discentes vêm, em grande parte, de regiões periféricas. Bomfim conta que, com a rotina caótica e rígida de um músico, é importante que os estudantes periféricos recebam auxílios que facilitem essa prática musical. A área social da EMESP busca manter diálogo com esses núcleos familiares e, além disso, oferece auxílios como o vale transporte para a locomoção dos alunos até a sede. “As próprias comunidades periféricas têm uma organização musical particular, como as Igrejas, então são muitos que estão aqui com o apoio da família.”

Camila Bomfim enxerga a EMESP Tom Jobim como um projeto de concretização. Para ela, a vida de um músico exige um compromisso forte e, por isso, “é quase monástica, você tem que transformar esse instrumento em algo que seja seu”.

Júlia Vasconcelos Abdalla, aluna de flauta doce na EMESP, completa esse sentimento: “Não consigo separar a música de quem sou eu.  A música também é um pouco a minha base de como eu construí o entendimento de outras coisas.  Assim, ela impacta no meu cotidiano, nos estudos, nos momentos de lazer, nas escolha. A música está sempre presente”.

Júlia Vasconcelos Abdalla no Encontro Internacional de Música Antiga [Imagem: Bruno Lima/Acervo Pessoal]
Júlia Vasconcelos Abdalla no Encontro Internacional de Música Antiga [Imagem: Bruno Lima/Acervo Pessoal]

GURI 

Em 1995, 180 crianças e adolescentes, alunos da Oficina Amácio Mazzaropi, surpreenderam o público em sua primeira apresentação ao tocarem Bachianas Brasileiras, Beethoven e Bolero de Ravel. A surpresa, porém, não foi pela escolha do repertório, mas sim pelo fato de que todos aqueles alunos tiveram suas primeiras interações com o universo musical apenas alguns meses antes da performance. 

A oficina era o primeiro polo do Projeto Guri, política pública do estado de São Paulo que tem o intuito de promover educação musical para jovens. O projeto passou por diversas etapas e transformações, construindo uma rede cada vez maior de alunos, e consolidando seu espaço no cenário educacional da música. 

34 anos depois, o Guri está presente em todo o estado de São Paulo, e oferece educação musical para jovens dos 6 aos 18 anos. Com mais de 400 polos e cerca de 70 mil vagas anuais, o programa é um estandarte de cultura e, por meio da música, trabalha para oferecer aos alunos e familiares, muitos em situação de vulnerabilidade social, uma experiência libertadora e transformadora, capaz de moldar uma nova realidade.

Concerto Orquestra de Cordas do Guri de São Paulo [Imagem: Robs Borges/Acervo Pessoal]
Concerto Orquestra de Cordas do Guri de São Paulo [Imagem: Robs Borges/Acervo Pessoal]

Hoje, existe uma divisão entre o Projeto Guri (voltado para os polos do interior) e o Programa Guri (voltado para a capital e a região metropolitana de São Paulo), além disso, sua gestão está na ONG Santa Marcelina, no bairro da Luz. 

Dentro de uma das diversas salas de música do segundo andar do prédio, conversamos com Emerson, coordenador pedagógico da região da capital do programa. No Guri há 18 anos, ele passou por diversos ambientes da instituição. Formado em composição e regência, Emerson começou no programa como educador de canto e coral e passou pela coordenação da área de canto por 10 anos. 

O ensino tem foco em aulas conjuntas, com os alunos trabalhando dentro de um grupo em sala de aula, num método coletivo, “então são violões, sopros e cordas. Todos tocando juntos.” 

A administração do programa, após seu crescimento, passou a ser descentralizada. Existem atualmente 11 equipes administrativas, cada uma com cinco supervisores. Cada um é responsável pelas características e nuances de um grupo de instrumentos: as cordas friccionadas (como violino e violoncelo), dedilhadas (violão e harpa), sopros (flauta e clarinete), percussão e voz.

Concerto da Orquestra de Cordas do Guri [Imagem: Jean Ricardo/Acervo Pessoal]

O Guri também conta com polos de educação dentro da Fundação Casa. Pelo caráter muitas vezes de passagem da instituição, o ensino nesses casos é feito de outra forma. Existem equipes qualificadas para trabalhar dentro das fundações, com professores que compreendem o contexto sociocultural dos jovens e conseguem desenvolver projetos musicais no período que eles passam dentro da instituição. 

“Na Fundação, a gente tem um modelo de trabalho diferente dos polos, nós trabalhamos por ciclos, e os ciclos estão muitas vezes interligados com os períodos de internação.”

Dentro dos CIP’s (Centro de Internação Provisória), os jovens ficam à espera de uma decisão judicial. Por isso, as aulas são pensadas como um início, meio e fim para aquele momento. Já nos CI’s (Centro de Internação), o tempo de internação é maior e existem outras aulas que também compõem o ambiente educacional dentro da instituição. Dessa forma, o ciclo na educação musical do Guri pode ser mais concreto. 

“O educador que atua nesse território, nesses espaços, precisa ter essa percepção e dinâmica de entendimento com a música, que seja o funk, o samba, o rap, enfim, e transformar aquilo tudo dentro da proposta do violão, da percussão. Existem trabalhos muito bonitos e especiais na Fundação”, complementa Emerson. 

Ainda sobre o método de ensino coletivo, o comprometimento “quase monástico” da música não é o foco do programa, mas esse conceito está inserido e é cultivado pelas dinâmicas coletivas. “Esse não é o foco, mas esses princípios a gente semeia, né? O comprometimento com a música, a disciplina do estudo, a dedicação, a prática, seja voz ou instrumento.” 

Para os alunos que procuram uma dedicação maior ainda depois de toda sua evolução possível na música, existem os grupos musicais do Guri, em que estudantes bolsistas, escolhidos por meio de um processo seletivo, tocam e se dedicam cada vez mais à arte. 

“Acho que as artes, no mundo geral, precisam ser mais valorizadas. Mas eu acredito bastante que a experiência de tocar um instrumento ou cantar proporciona uma abertura e uma compreensão dos processos estéticos, que são fundamentais para a gente”. Emerson conclui: a música, que você se envolve e dedica, aprimora esses valores sensíveis, essenciais para a sociedade.

Theatro São Pedro: inclusão do povo na música de concerto

Para Ricardo Appezzato, músico, percussionista de formação e gestor artístico do Santa Marcelina Cultura e do Theatro São Pedro, espaços culturais como teatros têm importante papel de transformação social quando promovem o acesso de diversos públicos à cultura.

Salas de concertos e casas de ópera são tradicionalmente conhecidos por sua formalidade e rigor comportamental: o público, comumente vestido de terno ou vestido de gala e casaco de pele, assiste estático à apresentação da orquestra e dos solistas, preparado para condenar com o olhar aqueles que aplaudem entre trechos das peças, antes do fim definitivo.

Um dos mais tradicionais espaços culturais da cidade, o Theatro São Pedro está localizado no bairro da Barra Funda, na capital paulista [Imagem: Heloísa Bortz/ACervo Pessoal]
Um dos mais tradicionais espaços culturais da cidade, o Theatro São Pedro está localizado no bairro da Barra Funda, na capital paulista [Imagem: Heloísa Bortz/ACervo Pessoal]

“Existe um debate muito profundo em relação a isso na atualidade. Comumente, a música clássica é rotulada como elitista, o que não é totalmente verdade. Os agentes responsáveis pela produção das óperas e concertos pertencem à classe trabalhadora, desde os músicos aos profissionais técnicos”, afirma Ricardo. Para ele, o público também se diversificou e os ritos relacionados ao comportamento exigidos dos espectadores vêm se desmitificando, tornando o teatro um espaço no qual todos se sintam livres para conhecer arte, sem a necessidade de formalidades.

A inserção de apresentações dos projetos educacionais movidos pelo Santa Marcelina Cultura no Theatro São Pedro — apresentações do GURI e dos grupos artísticos, orquestras e bandas jovens da EMESP, por exemplo —  contribui para que mais pessoas, tanto estudantes como familiares e outros interessados, se sintam acolhidas pelo espaço. Para Ricardo, “quando um estudante está no palco, ele ou ela se apropria do local”. A participação ou apreciação da música de concerto faz com que populações que antes se sentiam afastadas desses espaços culturais sejam capazes de ocupá-los como parte de seu direito à arte.

Quando questionado sobre a entrada de cidadãos que vêm das periferias em funções artísticas e administrativas no teatro, Ricardo contou que alguns músicos da orquestra do Theatro passaram por projetos pedagógicos organizados pelo Santa Marcelina. Por meio deles, os estudantes têm acesso às ferramentas técnicas para que a entrada no mercado de trabalho das produções culturais se torne uma escolha possível. Eventos gratuitos proporcionados por casas de ópera e salas de concerto também são formas de democratizar o acesso à cultura.

Orquestra no Theatro São Pedro [Imagem: Alê Coronato/Acervo Pessoal]
Orquestra no Theatro São Pedro [Imagem: Alê Coronato/Acervo Pessoal]

Além disso, a diversidade de artistas e espectadores também se tornou uma preocupação da sociedade civil e do setor artístico, que antes negligenciava o repertório produzido por compositoras e discriminava e rejeitava a participação de pessoas negras em espetáculos eruditos. “Hoje, um concerto que tenha um conjunto musical formado apenas por homens brancos, um programa sem obras compostas por mulheres e uma plateia sem jovens gera incômodo”, afirma Ricardo.

Apesar dos avanços, a produção de arte também enfrenta desafios externos aos palcos: o diretor aponta que é necessário expandir a compreensão da arte como experiência estética e entendê-la como um mecanismo que pode gerar empregos, movimentar a economia e encarar seu acesso como política pública.