Eu pixo, você pinta, vamos ver quem tem mais tinta

A arte da periferia que o sistema quer que você não veja

Maria, Ângela e Iara vêem no pixo uma forma de fazer as pessoas da periferia se sentirem pertencentes ao espaço universitário [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

Inscrever mensagens nas paredes é uma herança que a humanidade traz consigo desde que o homo é sapiens. O ser humano, por onde passa, deixa suas marcas e, a partir dessas, constrói as narrativas de seu povo em determinada época. Seja na caverna de Lascaux ou na Estação de metrô São Bento, a expressão artística é inerente à ocupação humana dos espaços e não existe quem possa impedi-lo de marcar os lugares que passa. Nesse sentido, as ruas de São Paulo organicamente produziram com o pixo seus próprios códigos e pinturas para marcar os muros da maior metrópole da América Latina, escrevendo sua própria história que parte não só da periferia para o centro, mas, também, da periferia para a universidade e da periferia para o mundo.

O pixo surgiu como expressão autônoma da periferia paulistana, tendo como ponto de partida o dono de um canil, conhecido como “Cão Fila Km 26”, segundo o documentário “Pixo” de João Wainer e Roberto Oliveira. Esse comerciante, ao marcar as paredes anunciando a venda de cães da raça fila, teve sua forma de publicidade absorvida pelas comunidades, que começaram uma revolução artística nas ruas, morros e becos do país. 

Para quem constrói a cena da arte de rua, pixar é muito mais do que riscar muros. “O pixo é importante porque eleva a periferia ao mesmo lugar dos centros urbanos e é muitas vezes o único contato que muitas pessoas têm com a arte”, afirma Angela Chiquetto, conhecida por Negrita. Ela integra, juntamente com Maria Antonieta Falcão, Iara Marques, também conhecida como Iara Crioulá,  e outros estudantes de artes, o coletivo USPixo dentro da Universidade de São Paulo. O grupo foi criado com a iniciativa de ser ponto de encontro para pessoas de periferia dentro da universidade, mesmo as que não estão diretamente envolvidas com a cena da arte de rua. “É importante mostrar para as pessoas de periferia que estamos aqui dentro”, diz Iara, apontando a missão da USPixo de tornar a universidade mais próxima daqueles que só conseguiram acessá-la muito recentemente.

Pixo é arte?

Não é uma tarefa fácil ocupar os espaços universitários com a arte de rua. [A universidade] é um lugar inacessível para quem vem da arte de rua, é um lugar que temos que estar sempre abrindo brechas para ocupar”, diz Maria. Ela acrescenta que “a arte periférica é tão maior que a universidade e eles se negam a abordar isso nos cursos de artes, por exemplo”. Isso porque trata-se de uma linguagem criminalizada, algo que, para as integrantes do coletivo, tem muito a ver com sua origem social.

“A gente é ensinado a questionar a pixação por ser uma arte que vem das comunidades de periferia, vendo ela como poluidora dos espaços, mas ninguém é ensinado a questionar as propagandas, por exemplo”, afirma Ângela, que vê o pixo como ferramenta artística de disputa de espaços com a publicidade de grandes marcas dentro da cidade de São Paulo. A artista continua, dizendo que o pixo reto, estética própria da capital paulista, é pensado justamente para ocupar milimetricamente e de forma desordenada todos os espaços possíveis para acompanhar o quão sufocante é a cidade e, desse modo, estar presente em todos os lugares. Há quem diga que, devido a sua desordem e relativa má fama, o pixo não é arte de verdade, mas para as artistas não é a função deste ser visto como algo belo, “não é para ser ‘bonito’, é para ser um grito, porque a capital engole você e se você não gritar, você não é ouvido”.

Nessa iniciativa de gritar para a cidade ouvir, o pixo acompanha a trajetória da periferia que, a fim de sobreviver, percorre o território da cidade, seja para trabalhar ou para estudar. Portanto, para elas, trazer o pixo para dentro da universidade é deixar claro que as ruas estão ocupando o espaço acadêmico também e sendo referência para muitos, “O coletivo existe para mostrar o quão grande é a arte que acontece na periferia e mostrar que ela pode acontecer aqui também”, aponta Iara.

Para as três integrantes, a arte de rua é a única que dialoga profundamente com suas experiências de vida [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

Para além dos julgamentos alheios em relação ao pixo atrelado aos conceitos do que é arte, ele também é comumente caracterizado como vandalismo. Segundo as participantes da USPixo, criminalizar essa forma de expressão tem nome, tem endereço e tem cor. Nesse prisma, quando a produção artística é exposta em lugares majoritariamente acessados por uma população elitizada, como grandes galerias de arte, ela acaba sendo mais aceita pelo corpo social do que quando está em muros, nas ruas mundanas e é produzida pelos próprios moradores das periferias. Ainda mais profundamente, a concepção negativa acerca do tema está, de acordo com Iara, intrinsecamente ligada à glorificação da propriedade privada. “Marcar a terra do outro incomoda muito. Só não quando está gerando alguma grana, e o pixo não gera grana”, atesta a estudante, que ainda esclarece: “na visão de muitos pixadores, é para ser assim mesmo. Não queremos que vocês gostem da gente”.

Do alto dos prédios não se quer ver o morro

Todavia, há divergências no que condiz ao referencial estético e o próprio movimento do pixo quando observado por um viés nacional, ou também por um internacional. No Brasil, a falta de aceitação está atrelada ao seu nascimento, ao território onde se originou. O desgosto e o preconceito pela cultura periférica são transmitidos de geração para geração. Porém, esse não é exatamente o caso em países do exterior, tais quais os Estados Unidos e nações europeias, que valorizam a arte. “É engraçado como o resto do mundo conseguiu enxergar a grandiosidade dos prédios tão altos, dos muros inalcançáveis, do alfabeto codificado e do ato de ser noturno e escondido”, comenta Iara. Por outro lado, ela explica: “eu não acho que seja porque eles têm um senso estético mais apurado ou porque eles têm mais consciência, é por causa de um contexto diferente. Não é por alguma elevação da mentalidade de lá, é só porque eles acham [o pixo] diferente”.

No que tange ao contexto produtivo por detrás da pixação, há, além de tudo, um estigma na validação do pixador como um artista. As meninas do coletivo concordam ao expor que esses indivíduos só são reconhecidos por quem já está inserido na cultura hip hop. Esta configura-se, pois, como uma importante fonte educativa, uma vez que movimento cumpre um papel de transformação social ao passo que denuncia escancaradamente a realidade e as lutas de grupos socialmente marginalizados. Ao ser consumido, ele exerce seu poder estabelecendo vias de identificação, visibilidade e conscientização. Apesar de todas as suas contribuições, a manifestação artística ainda reflete as mazelas do machismo, reconhecidas pelas próprias integrantes do coletivo, que salientam que “para a mulher, é muito difícil começar a pixar e se manter pixando”, já que o preconceito contra o ato se reverbera ainda mais quando exercido pelo gênero feminino, inclusive dentro da própria cena hip hop. Dessa maneira, a USPixo, formada quase inteiramente por mulheres, é uma notória representante das iniciativas que buscam romper com esse paradigma e se impor perante às dificuldades.

As jovens fazem uma intersecção entre ser artista de periferia e mulher dentro da cena [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

Os sprays que pixam o amanhã

Quanto ao futuro da arte nacional ligada à ocupação das ruas por parte do âmbito cultural periférico, as estudantes exibem um olhar subversivo ao dizerem que “a gente já está [nas ruas] e isso já acontece, é o nosso futuro. O futuro é o nosso presente e a arte de rua é o que dialoga com a gente. Por isso, não temos como fugir desse pensamento”. Diante disso, elas reiteram que seu coletivo de pixo faz presença ao ter como objetivo abrir os olhares dos cidadãos para esse movimento, o que está muito longe de ser uma tarefa concluída.

Mesmo assim, elas declaram que o pontapé inicial teria que acontecer em algum momento, e a USPixo nasce para tomar essa responsabilidade para si. Ângela ainda reconhece, de forma otimista, que em seus 50 anos de história, o hip hop já realizou muitas transformações positivas — a maior integração entre comunidades, interpretações críticas do mundo e a valorização das identidades periféricas, por exemplo — e caminhou para um patamar elevado na sociedade. “São Paulo se tornou a cidade que é por causa dele, isso já é muita coisa”, continua sua colega, Iara. “De qualquer forma, não tem como se iludir, porque a elite artística de São Paulo está há mil quilômetros de distância da gente. A gente vê quem está nas galerias, quem consegue os editais, quem está na TV e quem está nas capas dos jornais. Então, ainda não estamos na porta de igualdade de ocupar os mesmos lugares e de ter o mesmo valor”, conclui. Assim, quem está em camadas sociais mais altas ainda não reconhece que o padrão estético da cidade é o do pixo, apesar de já ser, como asseguram as membros do coletivo.

Na prática, a USPixo e demais movimentos estão ativamente vivendo e marcando, fisicamente, os territórios por onde passam. Ao escreverem nas paredes do cenário urbano, os participantes da cena não estão somente ocupando os espaços da cidade, mas também registrando sua história como seres humanos e estampando as ruas com suas existências em forma de expressão artística. As integrações feitas por esses coletivos já demonstram que o pixo não vai passar despercebido pelas novas gerações.

O coletivo acredita no poder didático do hip-hop para marcar espaço na arte nacional [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]