Empinar pipas é mais do que uma brincadeira, é uma expressão cultural que encanta gerações
Da infância à vida adulta, é um momento de descanso e relaxamento para os amantes dessa arte. “Não é a mesma coisa se eu ficar um final de semana sem empinar pipa”, declara um deles
24/05/2024
Júlia Sardinha

As pipas são o compromisso obrigatório de cada final de semana do grupo e de outros amigos. Da esquerda para a direita: Thamires, Guilherme, Rafael, Vinicius, William, Valter e Jeferson [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]
Brincadeira de criança / Como é bom, como é bom / Guardo ainda na lembrança / Como é bom, como é bom / Paz, amor e esperança. Os versos da canção Brincadeira de Criança – do grupo Molejo – expressam toda a saudade de ser criança. Sentimento que cresce com o cotidiano da vida adulta, em meio as suas obrigações e responsabilidades.
A faixa etária não impede que a sua ‘criança interior’ apareça. Compartilhar brincadeiras de décadas passadas, hoje, é visto como uma tradição entre famílias e amigos. Esse resgate das memórias infantis une gerações e passa a ser mais do que uma brincadeira, para praticantes se torna uma identidade.
Amor à primeira cortada
Os irmãos William e Guilherme Viana empinam pipas há 30 anos. A paixão cresceu pelo incentivo do seu tio Valter Domingues que – com mais de 50 anos de experiência na atividade – os acompanha nas ‘cortadas’ feitas na laje da avó dos meninos. A cada fim de semana ou festival que colocavam suas pipas no ar, os irmãos faziam novas amizades e as traziam para o ciclo dos ‘pipeiros’, como os entusiastas Jefferson Gomes e Rafael Fonseca.
Para as duas gerações, uma sensação oficializou o afeto pela brincadeira: a adrenalina. William afirma que, no início, o encanto partiu das cores e dos desenhos que observava nas pipas, mas quando cresceu – assim como declaram Guilherme, Rafael, Jefferson e Valter -, a empolgação de se cortar a linha da pipa de um amigo se tornou maior. “Prazer da adrenalina de cortar um ao outro”, diz Jefferson.
“Não é pela pipa. É pela adrenalina de chegar primeiro que a outra pessoa e pegar [a pipa]”
William Viana

Vista da laje da casa da avó dos irmãos Viana, lugar onde família e amigos marcam presença para colocarem suas pipas no alto. [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]
Em entrevista, o quarteto de amigos disse que nunca participaram de competições, mas vão em peso aos festivais, que ocorrem pelo menos uma vez ao mês. O último foi na cidade de Sorocaba, em meio a um canavial. A reclusão do local, segundo eles, se deve ao cuidado que os pipeiros têm para não machucarem a si mesmos nem a terceiros. “Tudo na brincadeira, nada na confusão para todo mundo acabar se divertindo”, declara Guilherme.
Uma herança de família
Empinar pipas se tornou “uma tradição de família, um vai passando para o outro”, afirma Thamires Peres, esposa de Guilherme e mais uma fã da atividade. Seja de tio para sobrinhos ou de pai para filho, a ‘arte de empinar pipas’ se tornou uma herança.
Já adulto, Valter presenteava os irmãos Viana com carretéis, linhas e pipas. E o incentivo dado pelo tio foi transmitido para Vinícius – filho de Guilherme e Thamires, afilhado de William. O pequeno pipeiro conta os dias para empinar com o pai e com o padrinho, conta a sua mãe. O gosto pela cultura já veio de berço – ou melhor, da barriga: o ‘chá de bebê’, organizado para o nascimento de Vinícius, teve as pipas como temática da festa. E prestes a se tornar irmão mais velho, Vini percebeu que o caçula, que se chamará Lucas, também não escapou do fascínio do pai: para revelar o sexo do bebê à família, Guilherme pediu aos amigos que o fizesse por uma pipa e assim foi feito. William, Jefferson, Rafael e outros amigos e parentes soltaram uma pipa azul para anunciar a vinda de Lucas.
Os filhos de Jefferson também não ficaram imunes à ‘paixão pipeira’. Para o pai, passar a cultura para eles – André e Enzo – vai além de mostrar como eram as brincadeiras em uma época antes da internet, é um “momento de estar próximo dos meus filhos”, relata.
“Já virou tradição, porque nós nos encontramos com os amigos, conversamos e nos divertimos. Nós pegamos esse momento de empinar pipa para reunir os amigos e a família”
Guilherme Viana

O chá de bebê de Vinícius foi decorado com pipas. Antes de andar, o menino já começou a empinar com o seu pai. [Imagem: Thamires Peres/Acervo Pessoal]

Guilherme carrega na pele um momento dele com seu filho, Vinícius, brincando com pipas [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]
Um bom pipeiro à pipa retorna
Praticar a mesma atividade por décadas pode parecer exaustivo para muitas pessoas, mas não para os apaixonados por pipas. “Nunca parei [de empinar]”, afirma Rafael – autodeclarado um ‘pipeiro das antigas’.
As responsabilidades, o trabalho e a correria do dia a dia forçaram William, Jefferson e Valter a darem um tempo à prática. De acordo com eles, a pausa da atividade foi por aproximadamente 15 anos e voltou com maior força durante a pandemia da covid-19. Em um momento de isolamento social e estresse – como ocorreu em 2020 e 2021 –, empinar pipas foi o momento que os entrevistados encontraram para se dissociarem.
“[Empinar pipa] é um hobbie, é um relaxo mental. É um momento que a gente tem para relaxar a cabeça de todo estresse”
Jefferson Gomes
A cultura pipeira não se limita ao momento de colocar as pipas no céu. Para William, a atividade é um ritual. Há 26 anos ele produz as próprias pipas, “não gosto de comprar”, diz. Ele não é o único, todos do grupo afirmaram já terem se aventurado no complexo ofício de se fazer a própria arte através da pipa, trata-se de uma terapia para eles, um momento em que podem resgatar os seus ‘meninos interiores’.

William gosta de passar ‘horas e horas’ produzindo os próprios pipas. Para ele, o melhor momento é poder os colocar no céu, mostrar para os amigos e ser elogiado pelo seu trabalho [Imagem: William Viana/Acervo Pessoal]
Passado, presente e futuro pelos ares
Três gerações: Valter, a primeira; Thamires, Guilherme, William, Jefferson e Rafael, a segunda; por fim, Vinícius, a terceira. A arte de empinar pipas não se manteve imutável, entre os anos que se passaram, as eternas crianças declaram ter percebido muitas diferenças.

Com seis anos, Vinicius gosta de empinar pipa e influencia a sua mãe a participar, colocar pipas no alto e correr atrás das que foram cortadas [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]
“Na época, era muito difícil conseguir um carretel de linha”, relembra Valter sobre a sua infância. Hoje, a primeira geração dos pipeiros enxerga que da brincadeira, a pipa formou uma indústria com fabricantes e automatizações – como o uso do aplicativo Windy para controlar a direção das pipas com base na velocidade do vento. E a tecnologia não influenciou somente nesse aspecto, Jefferson e Rafael disseram que ver crianças empinando, hoje, é muito difícil porque a tecnologia, as telas e os videogames as encantam de forma mais rápida.
“Na minha época, você cortava o bambu em gomos, fazia as suas varetas, comprava a sua seda e fazia o seu pipa, Hoje, você já encontra lojas que vendem pipas prontas, máquinas que enrolam as rabiolas”
Valter Domingues
Nos dias atuais, todos concordam com a importância de a fiscalização ser mais exigente. De acordo com Guilherme, muitos dos festivais que o grupo participa não são divulgados nas redes sociais. Os organizadores desses eventos buscam evitar lotações e tumultos para que, em meio às linhas, ninguém saia ferido. Seja nas ruas, nos terrenos abertos ou nas lajes, empinar pipas é uma cultura que encanta todas as idades. Para tornar a prática mais segura e acessível, Jefferson aponta a necessidade de “hoje em dia ter um espaço próprio, cultural, para ter o lazer de empinar, onde não tenha fiação nem pessoas que possam se machucar”.

O lazer de Guilherme, William, Jefferson e Rafael era jogar bola, pião, bolinha de gude e pipa em uma época em que não tinha celular nem computador. Nessa época, a rua era a diversão dos meninos, onde podiam brincar o dia inteiro [Imagem: Guilherme Viana/Acervo Pessoal]