Eduarda Aguiar: a dançarina que virou documentário
Responsável por levar a arte para a comunidade do Jardim Elba, a trajetória de Eduarda ganha uma produção cinematográfica produzida pela filha
27/04/2024
Lucca Pedrosa, Mariana Ricci e Thaís Santana da Costa

Registros de Eduarda utilizados na produção do filme [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]
Espalhadas sobre a mesa, uma série de fotografias. Em todas, a figura principal é a de uma jovem em roupas de dança, estonteantes de tão coloridas. Os registros foram trazidos pela mulher que as revê. Inteira de preto, blusa e calça, seria difícil acreditar que Natássia Aguiar Vitale é filha daquela dançarina das fotos, não fosse o rosto quase idêntico ao da mãe. É difícil acreditar, também, que depois de anos como bailarina na televisão, administrando uma academia de dança e sendo símbolo feminino dentro da comunidade do Jardim Elba, em Santo André, Eduarda Aguiar — a moça das fotos e mãe de Natássia — passaria seus últimos anos lutando contra um grave quadro depressivo, antes de falecer; vítima de uma parada cardíaca, aos 50 anos de idade.
Apesar do convívio encurtado, Natássia herdou da mãe o fazer artístico — mesmo que manifestado de outra maneira: formou-se em audiovisual pelo SENAC e, desde 2017, trabalha com produção cinematográfica. Antes restrita a áreas mais técnicas, estreará, esse ano, como diretora contando a história de Eduarda:
“Para mim, ele [o filme] é lido de muitos lados. E faz muito sentido esse ser meu filme de estreia. Porque não sei se eu poderia contar outra história que fosse mais adequada do que essa, que é [a história] da minha mãe. Então, parece que foi o momento certo”
O curta-metragem documental nasce de um desafio: contar em até 30 minutos uma vida inteira de dedicação à arte e à comunidade. Nascida em 1960, Eduarda Aguiar começou a fazer sucesso ao integrar o corpo de dançarinas de programas como o ‘Canta Viola’ ou o Clube do Bolinha’, fenômenos na década de 80, que a tornaram mais que uma bailarina: uma referência na comunidade do Jardim Elba.
Em uma área historicamente negligenciada pelos órgãos públicos de cultura e educação, Eduarda transformou a garagem da casa de sua mãe em sua primeira escola de dança, e para algumas meninas, um espaço de mudança de vida. O documentário colheu entrevistas de algumas das alunas da academia de Eduarda, a fim de entender o peso desse lugar na vida dessas meninas e da comunidade inteira: “As meninas mais ligadas ao convívio dela [Eduarda] são, hoje, mulheres mais independentes, resolvidas”, apontou Roselaine Luiz, uma de suas alunas entrevistadas.

Roselaine foi uma das alunas mais longevas da academia de Aguiar. Na foto, segura o registro de uma de suas apresentações [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]
A produção aborda, também, aspectos trágicos da vida de Eduarda. Após passar por uma crise financeira, a academia teve de ser fechada; no mesmo período, Eduarda sofreu um aborto espontâneo. Tais acontecimentos resultaram num quadro de transtorno psiquiátrico grave, a ponto de demandar a internação da dançarina durante episódios de crises. A negligência do poder público para com a população periférica também no âmbito da saúde, especialmente a saúde mental, fez com que, até hoje, não se saiba ao certo o diagnóstico de Eduarda — outro ponto explorado pelo documentário.
O falecimento da artista não representou o fim de sua história. Através do curta, Natássia acredita que está, não só iluminando o passado da mãe, mas também mantendo viva sua memória no presente:
“O filme é, também, uma busca por um material quase definitivo. Minha mãe sempre registrou muito, mas reunir tudo isso e criar um filme, é ter um material definitivo. É isso que vai ficar como memória, sabe?”
Dançarina, amiga, mãe e uma figura inspiradora:
As roupas coloridas e o jeito despojado e indiscreto eram algumas das características que fizeram com que a figura de Eduarda Aguiar se tornasse um símbolo de liberdade e inspiração na comunidade do Jardim Elba. Com pai e mãe trabalhando, desde pequena foi condicionada a ser independente e usou a dança como forma de expressão. Mais tarde, os acessórios e estampas tornaram-se a principal marca da emancipação da dançarina em relação aos estereótipos da época. “Como ela era muito independente, dona de si, era uma mulher empoderada e talvez naquela época nem sabia”, afirma Roselaine, hoje advogada, que acredita que a disciplina foi uma das maiores contribuições de Aguiar em sua vida.

Mais que uma dançarina de tevê, Eduarda era um ícone no Jardim Elba [Imagem: Natássia Vitale/Acervo Pessoal]
“Eu não sei se eu vi ainda um coração tão bondoso quanto o dela” é o que diz a advogada quando questionada sobre como se lembra da “Tia Eduarda”, apelido pelo qual era chamada por suas alunas que, até hoje, guardam memórias de carinho e amizade da professora. A ex-aluna ainda acrescenta que o documentário se torna tão relevante na atualidade por trazer uma pessoa do bem, que influenciou uma geração de meninas até hoje. “Ele [o filme] traz uma mulher transformadora”, afirma.
Para além de uma iniciativa profissional, o documentário coloca-se na vida de Natássia como um projeto pessoal, que traz consigo uma significativa carga emotiva. Nascida e criada na academia de Eduarda no Jardim Elba, a cineasta conta que a produção se trata, também, de uma tentativa de reencontrar a mãe e a si mesma:
“Está sendo uma descoberta justamente de eu entender quem era minha mãe, estou buscando entender essa história e não só a dela, mas a minha também: quem eu sou e de onde as coisas vieram”
Lei Paulo Gustavo:
A produção, contando a história de uma mulher cujo ápice do sucesso se deu nos anos 80, só saiu do papel graças a uma lei aprovada em 2022. Elaborada a fim de mitigar os efeitos negativos que a pandemia causou ao setor cultural, a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) possibilitou o repasse de 3,86 bilhões de reais da União para Estados, municípios e o Distrito Federal; ficando estes responsáveis pela elaboração de editais, programas de fomento, e pela escolha dos projetos aos quais seria destinada a verba.
Ao possibilitar a existência do documentário, a lei tira das margens projetos regionais que não se auto financiam, criando uma cadeia produtiva que gera emprego e circula capital, como pontuou Natássia: “[A lei Paulo Gustavo] é uma forma de voltar a movimentar a arte nas cidades. Porque foram áreas muito atingidas pela pandemia. Muitas pessoas acreditam que o dinheiro investido nessa área é um dinheiro jogado fora, que ninguém assiste cinema nacional… mas, na verdade, em todas as etapas você está empregando pessoas: tem a pessoa que faz a comida, a pessoa que costura… esse dinheiro está movimentando um montão de áreas que não são enxergadas no primeiro momento”.
A descentralização dos investimentos públicos em cultura, bem como a reserva de cotas obrigatórias (20% dos projetos contemplados devem ser produzidos por pessoas negras; 10% por pessoas indígenas), previstas pela lei, foram as possibilitadoras de trabalhos como o de Natássia. No caso de Santo André, o município recebeu um repasse de, aproximadamente, 5,2 milhões de reais a serem investidos em projetos culturais.
Em dezembro de 2023, uma lei complementar sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva prorrogou o prazo de execução dos recursos da Lei Paulo Gustavo até o fim de 2024. Assim sendo, novos projetos protagonizados por pessoas da periferia ainda podem buscar o apoio público por meio de editais de seu município ou Estado. No caso de Santo André as inscrições podem ser realizadas através do portal Culturaz.
Expansão da cultura periférica
A essência de Eduarda Aguiar pode-se traduzir por uma única palavra: liberdade, que emanava pelas estreitas ruas do Jardim Elba através da dança. A Lei Paulo Gustavo possibilita que essa memória possa ser transmitida pelo documentário desenvolvido por sua filha que, em esperança de reencontrar-se com a figura materna, difunde a cultura periférica pela arte, tal como sua mãe.
Programado para ser finalizado no final de 2024, a produção será exibida em festivais em Santo André e em algumas unidades de CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), já que a produção enfatiza, também, questões psicológicas que cercavam a protagonista.

Natássia, à direita, e Roselaine voltam ao Teatro Municipal de Santo André, onde Eduarda montou vários projetos [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]
O projeto coloca-se como enunciador de uma história que inspirou diversas mulheres periféricas a irem além dos papéis que eram socialmente convencionados. Ele busca hoje, entre outras coisas, levar a independência e o empoderamento de Eduarda para novas gerações.
“Eu espero poder entregar um material que seja de alguma forma sentido pelas pessoas, que deixe algum sentimento em outras mulheres que possam olhar pra isso como um impulso de tentar coisas parecidas”, encerra Vitale