Da periferia ao pódio
A ascensão de atletas periféricos nos esportes de alto rendimento é uma grande conquista, mas há muitos empecilhos para a concretização desse sonho
Por Catarina Bacci, Gabriela Nangino, Louisa Coelho, Maria Eduarda Lameza, Maria Eduarda Oliveira e Theo Schwan
![[Imagem: Reprodução/Vozes das Periferias]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio-CAPA-724x1024.png)
“Pode ficar à vontade”, disse ele. Pegou seu computador, que seguiu intocado em toda entrevista, e nos direcionou para a sala de acolhimento psicossocial. Calmo, porém firme, ele parecia orgulhoso do complexo que desenvolveu. Quando se sentou conosco, olhou seu relógio seguido de um pedido de desculpas, pois o dia estava corrido.
Cesar Gouveia é presidente do Vozes das Periferias , organização sem fins lucrativos. Por meio dela, busca levar esporte, cultura e formação profissional para jovens em vulnerabilidade social de Vila Prudente, Zona Leste de São Paulo. Ele conta que, na verdade, o centro foi estabelecido como jornal comunitário , ainda em 2013.
Logo após uma demissão e em meio ao processo de desapropriação para a construção da Linha 15 Prata que o atingiria, Cesar buscou um professor de sua faculdade de Comunicação Social para pedir ajuda na construção de portfólio. Ele conta que, apesar do preconceito que ele mesmo carregava, o projeto surgiu como resposta à sua própria pergunta: “o que é que eu vou escrever sobre o meu beco?”
![Vozes das Periferias tem parceria com a oficina Futvida Vila Prudente [Imagem: Reprodução/Vozes da Periferia]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio-2-724x1024.png)
“O Vozes nasce de algumas dores e vontades”
Cesar não teve muitas condições de acesso a espaços culturais quando criança. Quando chegou a vez de sua irmã mais nova, lamentou não conseguir dar aulas de balé para ela. Essa foi a principal especialização que envolveu o projeto.
Quando a Brazil Foundation, organização internacional que mobiliza fundos e conecta pessoas para promoção de equidade social, apresentou o apoio inicial, o jogo mudou. Já com recursos, Cesar contatou seu antigo professor de futebol, Leandro, para, em parceria, criar o que hoje conhecemos como o Vozes das Periferias: um centro de acolhimento e desenvolvimento pessoal através do esporte e da cultura. Ele fala sobre a dívida que sente com a comunidade: “Lá atrás, isso me salvou”.
Atualmente, o Vozes expande sua influência com uma série de convênios. Mais de 500 jovens são atendidos num espectro amplo: do acesso ao esporte e à cultura, à formação profissional e à geração de renda. O engajamento familiar é, também, um pilar fundamental. “Sem a família, o jovem dificilmente consegue participar”, e Cesar acredita que o projeto pode funcionar como uma solução social para quebras de ciclos de pobreza e dependência, sem tirar apoio socioassistencial.
Corrida de obstáculos
Apesar da significância dessa proximidade, o presidente da instituição afirma que demonstrar para as famílias a importância desse esforço formativo é um grande desafio. Além da captação de recursos financeiros, outro obstáculo para o projeto é a dificuldade de utilização de espaços comuns, como quadras de escolas públicas, para o desenvolvimento das atividades. A resistência de parte dos diretores é percebida por Vozes como de teor trabalhista, uma vez que a operação é fora de território comercial, e ideológico, por não entender o poder de transformação da instituição.
O projeto continua cada vez mais forte, e conta com alunos mais antigos para seguir os ideais de Cesar para a manutenção do espaço. Crianças que cresceram no projeto e se estabeleceram profissionalmente, hoje, são professores na organização. Embora a participação em torneios seja promovida de forma institucional, a formação para o trabalho e, sobretudo, humana, vem à frente: “Antes de ter um bom atleta, preferimos ter um excelente cidadão”.
A realidade esportiva nas periferias de SP
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a prática de esportes, além de essencial para o bem-estar físico e mental, estimula a socialização e o desenvolvimento sócio-econômico. Estudo realizado desde 2012 pela Rede Nossa São Paulo, o Mapa da Desigualdade auxilia a organizar o planejamento municipal com informações relevantes, conveniente como uma ferramenta de base para elaborar políticas públicas.
Um dos detalhes da pesquisa é o esporte. Entre os indicadores avaliados, está o número de equipamentos esportivos públicos para cada dez mil habitantes. Os resultados apontam que as regiões mais centrais de São Paulo possuem um índice mais alto que as regiões periféricas. A facilidade de acesso a equipamentos influencia diretamente o contato da população com o esporte e seus benefícios.
Número de equipamentos esportivos públicos para cada dez mil habitantes por distrito de SP em 2022
![O “desigualômetro” mostra que um morador do distrito de Pari tem 26 vezes mais acesso a equipamentos esportivos do que um morador do distrito de Marsilac. [Fonte: Mapa da Desigualdade/Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio-3.png)
A pesquisa “Viver em São Paulo: Esporte” , conduzida pela mesma organização em 2019, teve como objetivo comparar a prática esportiva em relação às condições socioeconômicas da população – como cor, renda familiar, classe social, escolaridade, entre outros.
A apuração dos dados mostrou que metade dos entrevistados não praticou esporte ou atividade física nos últimos 12 meses. Os moradores das regiões Centro/Oeste foram os que mais afirmaram praticar regularmente, enquanto os moradores da região Norte mais declararam não praticar nem ter praticado no último ano. O mapa anterior revelou que essa área possui menor quantidade de equipamentos disponíveis.
Em números absolutos, cerca de 4,7 milhões de paulistanos são sedentários. A maioria deles se encaixa no perfil de mulher, preta ou parda, com renda familiar de até 2 períodos mínimos, moradora da região leste e com apenas o ensino fundamental completo.
Em contrapartida, os praticantes regulares são, majoritariamente, mulheres, brancas, com ensino superior completo e renda maior que 5 níveis mínimos. Entre os sedentários, a falta de tempo é o principal motivo apontado para não se exercitarem. Em segundo lugar, vêm os problemas financeiros.
A chegada nas grandes competições
Para entender mais sobre o tema, a Central Periférica entrevistou a professora do grupo de estudos olímpicos da Universidade de São Paulo Katia Rubio . Ela realizou um levantamento das trajetórias dos mais de 4 mil atletas que já defenderam o Brasil desde o início das Olimpíadas até a edição de 2016.
A pesquisadora coletou as histórias desses esportistas — de onde vieram, quais modalidades praticaram, suas conquistas e onde estão agora — e pôde mapear quais locais do país produzem quais atletas olímpicos. Segundo a professora, o atletismo e o boxe são esportes cujos representantes são, em sua maioria, de origem periférica. Kátia explica que isso acontece pois são atividades que não precisam de equipamentos para serem praticadas.
“No atletismo você não precisa de quase nada. Há crianças que correm descalças até conseguirem suas sapatilhas. É uma modalidade muito próxima do natural do corpo e isso ajuda quem não tem acesso”
Katia Rubio, USP
![A equipe brasileira de atletismo é uma das que leva maior percentual de atletas periféricos para as Olimpíadas [Imagem: Agência Brasil Fotografias/Wikimedia Commons]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio-1.png)
Para a professora, a criação do Ministério do Esporte em 1995 foi fundamental para o incentivo à prática por meio do Bolsa Atleta , da construção de centros olímpicos e de parcerias com as universidades federais. Entretanto, essas medidas não atingiram igualmente todos os lugares e, por isso, os projetos sociais são muito importantes para suprir a falta de políticas e de equipamentos nas escolas públicas e nas regiões periféricas. Eles possibilitam não apenas a promoção social por meio do esporte, mas também funcionam como porta de entrada para os clubes de alto rendimento.
Outro desafio enfrentado pelos atletas classificados para competições é arcar com os custos, que nem sempre são cobertos pelas organizações. Esse foi o caso de 14 lutadores de Petrópolis (RJ), que foram classificados para o Campeonato Sul-Americano da Confederação Brasileira de Jiu Jitsu, que seria realizado na cidade de São Paulo em maio de 2024. Os esportistas fazem parte do projeto social “ Lutando pela Comunidade” e precisaram organizar uma rifa para pagar a viagem.
O incentivo ao esporte no Brasil
Programa do Governo Federal, a Bolsa Atleta é administrada pelo Ministério do Esporte e visa garantir a manutenção pessoal dos atletas que não têm patrocínio. Atletas das modalidades reconhecidas pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) têm direito à bolsa, assim como os Olímpicos como os vinculados ao Comitê Internacional (COI) e ao Comitê Paraolímpico Internacional (CPI).
Nas categorias estudantis, nacionais ou internacionais, a bolsa é disponibilizada apenas para atletas de alto rendimento. O valor varia entre R$ 370,00 por mês, para atletas estudantis, e até R$ 15.000,00, para atletas de pódio – mas, para atletas olímpicos ou paralímpicos, não ultrapassa R$ 3.100,00.
Dos 302 atletas convocados para os Jogos Olímpicos de Tóquio, 242 (80%) fazem parte do Programa Bolsa Atleta. Das 21 medalhas conquistadas, 18 têm participação de atletas bolsistas, segundo o Ministério da Cidadania.
![Atletas falam sobre influência do Bolsa Atleta em suas vidas e carreiras em bate-papo na Casa Brasil, Rio de Janeiro [Imagem: Agência Brasil Fotografias/Wikimedia Commons]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio.png)
A importância de projetos sociais
Usando o esporte como fonte de empoderamento, o Instituto Cades (Cidadania Através do Esporte), responsável pela revelação da atleta Ludmila da Silva, da seleção brasileira feminina de futebol e do time Atlético de Madrid. “São 16 anos de atuação com mais de 70 mil pessoas já beneficiadas, impactadas e mais de 150 escolas atendidas” , afirma Ana Cristina, presidente do Instituto, em entrevista à Central Periférica .
“Acham que não são capazes, que não vão gostar, que não é para eles. Quando você trata da questão feminina, isso é ainda pior, porque elas escutam muito “o esporte não é para você”
Ana Cristina, Instituto Cades
A entidade social utiliza de leis federais e estaduais de incentivo ao esporte para conseguir financiar os custos de suas iniciativas, entretanto, com o orçamento público baixo, isso não é o suficiente para bancar o orçamento necessário. “Todos os setores têm que estar envolvidos e ajudar, e infelizmente o nosso país não tem cultura esportiva”.
![O Instituto Cades utiliza esporte como ferramenta para melhorar qualidade de vida e fortalecer os vínculos sociais de jovens em situação de vulnerabilidade [Imagem: Reprodução/Instagram]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Da-periferia-ao-podio-1024x990.jpg)
Como parte de seu programa, os Cades também trabalham com o oferecimento de modalidades de difícil acesso para uma população mais vulnerável, como o tênis. Por meio de oficinas de confecção, os alunos criam suas raquetes – um caminho que mostra a possibilidade de se praticar o esporte independente das condições financeiras dos jovens.
“Nós desmistificamos um pouco essa questão de que o tênis é de elite, sabemos que uma raquete profissional é cara, mas em uma escola, quando não é nada muito profissional, você pode adaptar”. Além disso, os projetos já desenvolvidos contemplam o material para uso nas aulas e, quando terminam a jornada, esses materiais ficam para as escolas ou instituições, uma forma de metodologia de continuidade à apresentação pela organização.