Brasil, referência mundial em vacinação, tem queda na imunização
Os movimentos antivacina nas redes sociais têm se intensificado; disseminação de fake news aumenta as chances do retorno de doenças outrora erradicadas no território nacional
Por Aline Fiori, Emerson May, João Victor Vilasbôas e Yasmin Constante
![[Imagem: Reprodução / Agência Brasil]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/bcc86c20-3c57-4c88-a27f-6fe6e766b6932.jpeg)
Com o início do inverno em junho, o Ministério da Saúde passou a reforçar a importância da vacinação contra a gripe. Através de notas e postagens na internet e campanhas nos meios de comunicação, a pasta busca aumentar a taxa de pessoas protegidas contra a Influenza e diversas doenças cujas vacinas compõem o Programa Nacional de Imunizações (PNI) – um desafio que aumentou nos últimos anos, com a queda acentuada nos números de doses aplicadas na última década. Desde 2016, o Brasil sofre com quedas nos índices de vacinação e, a partir de 2020, a cobertura vacinal total da população não chega a 70% de acordo com o DataSUS.
A origem dos movimentos antivacina
O esforço do Governo Federal para restabelecer a cobertura vacinal no país é um desafio de grandes proporções. Desde o advento da primeira vacina, a da varíola, em meados do século XVIII, há registros de pessoas que desconfiavam do teor dos imunizantes e que, até mesmo, eram veementes na defesa da tese de que as vacinas não eram seguras.
Esse foi o caso de Benjamin Moseley, que, na passagem para o século XIX, chegou a defender no parlamento britânico que as vacinas estavam relacionadas às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) ao nomear o imunizante contra a varíola como “sífilis do boi”, conforme rememora um artigo da BBC sobre esses movimentos.
Na história recente, um dos exemplos mais famosos é o do médico britânico Andrew Wakefield, que, nos anos 1990, publicou um estudo sobre uma suposta relação – já refutada pela comunidade científica internacional – entre a vacina tríplice viral e o desenvolvimento de autismo. Anos depois, em 2010, Andrew teria seu registro médico cassado após ser condenado por desonestidade – devido à comprovação de que ele recebeu vantagens financeiras para fazer essas afirmações contra o imunizante – e a publicação de seu estudo foi removida da conceituada revista científica Lancet.
No próprio Brasil, no início do século XX, houve resistências às primeiras campanhas de imunização. Em novembro de 1904, o Rio de Janeiro, então capital do país, foi palco da chamada Revolta da Vacina. O levante da população contra a iniciativa do Ministério da Saúde, liderada pelo médico e sanitarista Oswaldo Cruz, se opunha a aplicação de multas e restrição de direitos de quem se recusasse a receber a vacina contra varíola.
Àquela altura, a capital da República crescia de forma desenfreada e passava por uma série de reformas urbanas higienistas – o que intensificou o surto da doença e levou a pressões por parte dos médicos para vacinar os moradores da capital. Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), naquele ano, mais de 3500 pessoas morreram de varíola na cidade do Rio de Janeiro.
![Bonde derrubado no Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina, quando populares se manifestaram contra a vacina da varíola - até então desconhecida pelos brasileiros. [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Bonde_virado_Revolta_da_Vacina-1024x577.jpg)
Porém, nos últimos anos, com a difusão da internet e o crescimento substancial de campanhas de desinformação nas plataformas virtuais, os discursos antivacina passaram a ser difundidos de forma massiva e com abrangência desproporcional. E, durante a pandemia de Covid-19, a onda de fake news relacionadas às vacinas cresceu sobremaneira. Conforme pesquisa divulgada em reportagem da FioCruz de 2020, apesar de, na época, 87,6% dos comentários com mais engajamento sobre os imunizantes serem positivos, cerca de 13% dos links eram de notícias falsas – o que os pesquisadores classificaram como “problema extremamente grave, pois [as fake news] prestam um desserviço à população”.
Em geral, as notícias falsas relacionadas à saúde e às vacinas tendem a vincular, sem provas e estudos científicos reconhecidos, os imunizantes ao desenvolvimento de doenças e mutações genéticas, além de defender que a obrigatoriedade de receber os imunizantes ou mesmo medidas de restrição de circulação para quem não se vacina fere a liberdade de expressão e princípios de algumas religiões, conforme aponta um estudo do portal Politize.
Brasil: de referência mundial a párea da imunização
As baixas taxas de vacinação preocupam para o alerta de risco de novos surtos e a volta de patologias que já haviam sido eliminadas no Brasil.
Em entrevista para a Revista Arco, da Universidade Federal de Santa Maria, o médico epidemiologista e professor de Saúde Coletiva da UFSM, Marcos Lobato, explica que a eliminação é diferente da erradicação. Para uma doença ser considerada erradicada é preciso que ela desapareça no mundo todo, já a eliminação diz respeito a um local específico onde não têm mais relatos de casos. “Quando a gente tem a eliminação de uma doença num território, num país, ele recebe um certificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Essa certificação significa que aquele local não tem mais casos de uma doença específica, mas isso não quer dizer que ela não pode voltar, pois ela não foi erradicada”, explica o professor.
Além disso, Lobato destaca que apesar de a poliomielite e o sarampo serem as patologias que mais costumam ser citadas, outras doenças também podem voltar. “A gente pode ter um aumento de outras doenças exantemáticas, que são doenças infecciosas comuns de aparecerem na infância e causam irritação na pele como a rubéola, por exemplo. Também podemos ter um aumento de difteria, coqueluche e das meningites. Todas essas doenças, que têm vacinas, tiveram uma queda da cobertura vacinal”, comenta o médico.
O que chama a atenção de médicos e pesquisadores a respeito dos movimentos antivacina no Brasil é justamente o histórico de sucesso do país em termos de cobertura vacinal. Há cinco décadas, conforme o site do Ministério da Saúde, o Programa Nacional de Imunizações foi criado, após a campanha massiva de vacinação contra a Varíola reduzir os casos da doença no Brasil, com o surto de 1971 sendo o último registrado no país.
Após sua derradeira epidemia ser notificada em 1977 na Somália, na África, a Organização Mundial da Saúde declarou a varíola humana como a primeira doença erradicada através da imunização.
Institucionalizado ainda na década de 1970, o PNI permitiu ao Governo Federal difundir a aplicação das vacinas e alcançou a erradicação de várias doenças pelo território brasileiro ao longo do tempo. Segundo dados do Ministério da Saúde, a poliomielite (que causa a paralisia infantil), a rubéola congênita, o tétano neonatal e acidental, a febre amarela e formas graves da tuberculose foram algumas preveníveis controladas através das campanhas vacinais no país.
![Mulher recebe dose da vacina contra a Covid-19 no Hospital das Clínicas de São Paulo [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/10/Vacinacao_contra_Covid-19_no_HC_508528657932-1024x575.jpg)
Sobre essa virada anticientífica no Brasil, a infectologista pediátrica, Maria Clara Valadão, relatou à Revista Arco: “O negacionismo contribuiu para que as pessoas começassem a desconfiar do processo vacinal que é extremamente seguro. Ele influenciou na decisão de várias famílias de não vacinar ou adiar as imunizações. Outro fator é a desinformação, eu tenho atendido muitas famílias que não levaram a criança para vacinar porque ela estava resfriada e isso não é uma contra indicação para a imunização”.
O professor Lobato destaca ainda que problemas na gestão da saúde pública também contribuíram para a queda dos índices. Entre eles, a aprovação do teto de gastos em 2016 e o congelamento nos investimentos e despesas federais com a saúde pública. O especialista acredita que agora é preciso retomar as campanhas de educação para a saúde e conscientizar as crianças sobre a importância da vacina.
O médico relembra o sucesso de personagens como o “Zé Gotinha” para aumentar os índices vacinais. “As pessoas devem cuidar do calendário vacinal. As vacinas são a tecnologia mais avançada que a humanidade já desenvolveu para prevenir doenças. Precisamos voltar a fazer propaganda de vacinação nas mídias e dizer que a vacina é muito boa e que ela protege a população inteira. A vacina é muito segura e é milhares de vezes mais segura para o usuário do que ele ter uma doença”, afirma o médico.
Um passado que torna a bater à porta
Dentre as doenças que tornaram a circular devido à queda da vacinação está a poliomielite, erradicada do Brasil em 1994, quando a Organização Pan-Americana reconheceu a eliminação da doença, graças a anos de uma campanha de vacinação abrangente. Hoje, porém, com a baixa na adesão de imunização, a doença corre o risco de voltar a atingir as crianças brasileiras. Em 2012 a cobertura vacinal contra a doença atingiu 96,5%, em dez anos a queda foi de quase 20%, a cobertura atingiu 77%. A pólio ainda não foi erradicada e permanece em dois países, no Afeganistão e Paquistão, com registro de 05 casos em 2021. Por isso, existe a preocupação com o seu retorno, pois mesmo que a distância geográfica seja grande os vírus se propagam com facilidade.
Já no caso do sarampo, outra doença infecciosa viral, o Brasil conquistou o certificado de erradicação da doença em 2016 pela ONU, mas o perdeu em 2018 após voltar a apresentar casos. Só em 2022 mais de 2 mil pessoas enfermas foram registradas. A doença é um grande risco, seus sintomas são febre acompanhada de tosse persistente, irritação ocular e corrimento do nariz.
Após estes sintomas, geralmente há o aparecimento de manchas avermelhadas no rosto, que progridem em direção aos pés. Entre suas consequências possíveis estão pneumonia, convulsões, lesões cerebrais e até mesmo a morte. A alta transmissibilidade do sarampo também é preocupante, uma pessoa infectada pode contaminar até dez outras pessoas, com a baixa adesão vacinal o resultado pode ser uma epidemia.
O coqueluche ou tosse convulsa, é uma doença infecciosa do trato respiratório, apresenta sérios riscos em bebês mas pode ser facilmente evitada através da vacinação. Ao final de maio de 2024, a doença teve 32 casos confirmados em São Paulo. A sua prevenção está incluída na vacina pentavalente, que além do coqueluche previne contra difteria, tétano, hepatite B, e Haemophilus influenzae tipo B. A penta deve ser tomada em três doses, aos dois, quatro e seis meses, seguida de doses de reforço de DTP — difteria, tétano e coqueluche. Desde 2016 a taxa de vacinação da doença não atinge os recomendados 95%.
A infectologista Maria Clara ressalta, por fim, que a volta de doenças que já não eram mais recorrentes em território nacional agravam o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos hospitais públicos e vai além das sequelas e do risco de morte que essas doenças, por si só, já apresentam. Com o retorno dessas infecções, os centros de saúde, que já sofrem com a deficiência de leitos em Unidades de Terapia Intensiva lotadas, também têm problemas de infecção hospitalar devido à falta de manutenção dos aparatos de saúde pública brasileiros.