Artesanato periférico enfrenta desafios para sua valorização cultural e econômica

Professor relata que a atividade serve de fonte de renda complementar a aposentadas e trabalhadoras informais

Por Arthur Souza, Letícia Menezes e Fernando Simões

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O artesanato é uma atividade cultural importante para a constituição dos vários grupos étnicos e sociais que compõem o Brasil, e desempenha papel fundamental na manutenção de suas respectivas tradições. A arte manual, popular e periférica possui grande importância econômica para populações marginalizadas, que buscam tornar essas habilidades rentáveis. Segundo o IBGE, o comércio de produtos artesanais movimenta cerca de R$100 bilhões por ano e representa cerca de 3% do PIB brasileiro. 

Apesar disso, a manualidade se mostra pouco reconhecida e inviável economicamente nas periferias. A concorrência de grandes lojas, a precarização do trabalho informal, o baixo retorno financeiro e a falta de interesse das novas gerações nas práticas manuais são apenas alguns dos maiores desafios enfrentados por artesãos e artesãs em vulnerabilidade.

O Central Periférica entrevistou Alan Santana, designer formado em artes visuais e professor de bordado na Fábrica de Cultura, para comentar percepções pessoais sobre o cenário imposto às trabalhadoras manuais nas regiões periféricas de São Paulo, a partir das vivências dele e de suas alunas. Ele entrou em contato com o artesanato por meio da tradição familiar, inaugurada pela sua bisavó, que conta ter sido uma bordadeira de vestidos de noiva renomada em Santo Amaro, na Bahia. 

Santana aponta os estigmas que a nomenclatura de artesão pode carregar e o seu distanciamento da figura do artista. “Quando falamos do artista, a gente entende que é uma pessoa que tem e leva uma pesquisa. E o artesão não tem necessariamente uma pesquisa acadêmica ou formal. Mas eu acho que ele tem uma pesquisa informal que não pode ser desconsiderada. O artesão e o artista caminham juntos”. Ele entende que este e outros tipos de preconceito são o primeiro passo para a falta de reconhecimento dos artesãos, sobretudo entre populações marginalizadas.

De acordo com o bordadeiro, outro pilar para a desvalorização do trabalho artesanal é a apropriação de tradições culturais pelos grandes centros comerciais e importadores de cultura do Brasil e do mundo. Sobre esse debate, Alan relembra um congresso do qual participou em Copenhague, na Dinamarca, que tinha como tema central justamente o apoderamento de processos culturais. “É muito interessante a Europa, que sempre foi uma grande apropriadora, discutir isso. Eu sempre pensei que fosse mais uma discussão do Sul Global. Acredito que eles estão discutindo isso exatamente pela apropriação das técnicas manuais”, relata.

Como exemplo, ele menciona a reprodução sintética dos vários métodos de cestaria dos povos indígenas brasileiros, que resulta na apropriação cultural e econômica dos frutos desses trabalhos. E completa: “A maior problemática da continuidade das técnicas manuais agora é como as pessoas conseguem financiar e manter a tradição das manualidades”.

Perspectivas e desafios

Como as novas gerações manterão a tradição do trabalho manual? Como tornar e manter cotidiana essa cultura? Santana reflete que mesmo sendo um grande desafio no dia a dia, ele ainda resiste, com um curso que conta com uma média de alunas entre 40 e 70 anos, além de uma aluna de 17 anos. E, mesmo com essa pequena vitória, sente-se que está se perdendo a batalha.

E as grandes marcas e as grandes lojas? Como funciona o mercado hoje em dia? O entrevistado pondera que, “as grandes fast fashion atrapalham em dois lugares. Acho que elas atrapalham no sentido de que elas se apropriam. Então, elas pegam, por exemplo, um bordado super bonito e tradicional feito manualmente, e copiam em máquina. Assim, você perde o desejo de consumir aquele produto e deixa de se identificar com aquilo”.

Ele também destaca os desafios econômicos enfrentados pelos artesãos. “Existe também a questão econômica, porque qualquer trabalho manual vai ter um custo mais elevado do que o realizado pela máquina. E a maioria não consegue pagar por produtos artesanais”.

Para Santana, ainda há um comportamento de consumo massivo que não valoriza o trabalho manual. “As pessoas estão mais preocupadas em ter muito ao invés de ter algo com qualidade. Por conta das tendências, elas querem mudar toda hora e os produtos estão mais descartáveis. Mas existe um movimento contrário que está vindo e está preservando a manualidade. O crochê, por exemplo, é uma coisa muito popular nas periferias de São Paulo”.

Ele observa, porém, um contraponto. “É um adereço mais acessível e que faz parte de um estilo, de uma cultura. Então tem o lado dessa juventude que está olhando pra essas técnicas e aprendendo. Mas tem o lado da juventude que não pode pagar ou não tem acesso e acaba consumindo produtos genéricos, que copiam outras culturas”

Quem são as alunas do curso

A fim de compartilhar a realidade das artesãs na periferia, o professor traça um perfil da sua turma de bordadeiras. Ele revela que a maioria de suas alunas mora na Zona Leste de São Paulo e que cerca de 90% delas são mulheres aposentadas, enquanto as demais são trabalhadoras informais. De acordo com Alan, algumas delas utilizam o artesanato como fonte de renda complementar, já que mesmo a aposentadoria muitas vezes não é suficiente para cobrir os gastos da casa. 

No seu curso, destaca-se uma aluna que descobriu no artesanato uma futura profissão, um olhar de empreendedora. “Eu tenho uma aluna mais engajada, que usa a manualidade como empreendedorismo. Ela vende com mais afinco, ela faz desde caderno até tricô, crochê, MDF, várias linguagens manuais que ela junta e vende também”.

Santana pondera a importância da manutenção do trabalho manual. “Primeiro queremos preservar e identificar a nossa cultura também, porque ela é muito fragmentada. Quando a gente identifica essa cultura, ela fica com mais força. Também tem uma outra questão quando falamos do Sudeste, porque no Norte e no Nordeste, acredito que as culturas estejam muito mais preservadas e participam mais do cotidiano das pessoas do que aqui”.

Santana relata uma dificuldade de demonstrar valor para sua clientela: “Aqui a gente vive esse conflito cultural de julgar o que é feio e o que é bonito. Essa estética aqui é uma coisa boba”.

E complementa que há limites sobre a pretensão de responsabilidade de uma atividade da indústria criativa periférica. “A arte não tem poder de transformação direta. Quem tem o poder de transformação direta são as ações governamentais e ponto. As leis, as emendas, o parlamento, enfim. Mas eu acho que a arte e a cultura, em geral, têm o poder de mudar os símbolos que as pessoas cultuam”.

Por fim, ele valoriza seu trabalho e destaca os desafios diários de se empreender nesse mercado: “Passa por alguém reconhecer esse trabalho, porque o trabalho manual não é reconhecido como um trabalho lucrativo. Ele até é reconhecido, pode ser com leve lucro, mas ele não é reconhecido como um trabalho de autoria. Ele não é tido como uma fonte de segunda renda ou até como um hobby”.