A herança das tranças e o trabalho das trancistas nas periferias
Tranças são vistas como movimento de resistência cultural e homenageiam a ancestralidade
Por Beatriz Sandoval, Isabela Slussarek e Luana Riva
As tranças chegaram ao Brasil durante o período da escravidão, em que eram vistas como uma forma de manter a conexão e comunicação entre as mulheres com suas raízes africanas. No século 20, o movimento Black Power ganhou força nos Estados Unidos, e as tranças ganharam cada vez mais força entre a sociedade. O Brasil foi impactado pelo movimento, o que valorizou ainda mais a estética afro-brasileira entre as mulheres.
Nos anos 2000, as tranças tornaram-se símbolos da moda afro e a profissão de trancista ganhou mais força nas periferias do Brasil. O trabalho informal tornava precário a atuação das profissionais, em que lidavam com a insegurança jurídica, e a falta de direitos trabalhistas e de políticas que apoiam o empreendedorismo.
Em junho de 2025, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) reconheceu a profissão de trancista na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Ao oficializar, o Brasil considera a importância econômica, social e cultural da profissão, em sua maioria, exercida por mulheres negras das periferias.
Uma forma de empreendedorismo feminino
As tranças são muito mais que uma escolha estética, e além de representar raízes africanas, são a principal fonte de renda de muitas mulheres nos dias de hoje. Em entrevista ao Central Periférica, a trancista Léa dos Santos Nascimento afirma que seu trabalho incentiva a evolução, em diversas áreas de sua vida. “A trança, pessoalmente, significa evolução, determinação, esforço e muito treino para estar sempre melhorando. Culturalmente, significa uma ancestralidade, eu trago esse dom nas mãos e no coração”, relata.
Para Léa, as tranças também têm papel fundamental na autoestima e na relação das mulheres negras com o próprio cabelo. “As tranças contribuem para a autoestima das mulheres, principalmente na fase de muitas negras que alisavam o cabelo e hoje não alisam mais”, explica. O processo, denominado como transição capilar, ocorre quando a pessoa muda o formato do fio, deixando de alisar, e começa a usá-lo natural.
A trancista admitiu que “a transição com as outras tranças fica mais leve, porque quem está passando por ela acaba não vendo essa mudança o tempo todo, já que está trançada, elevando sua autoestima”. Ela também destaca a praticidade do penteado no cotidiano: “Você acorda com o cabelo pronto e arrumado, por mais que a trança peça por alguns cuidados”.
O reconhecimento da profissão de trancista simboliza mais do que um avanço trabalhista — é o fortalecimento de uma cultura que atravessa séculos e se reinventa a cada nova geração, além de reconhecer o esforço por trás desse trabalho. Ao ser incluída na CBO, a profissão passa a ter respaldo legal, abrindo caminho para a criação de políticas públicas voltadas à capacitação e à valorização das profissionais. Para mulheres como Léa, que vivem desse trabalho, o reconhecimento representa também segurança e dignidade.
“Olhou uma trança, entenda que ali tem uma mão. Não é um serviço feito por uma máquina e sim por duas mãos que ficaram em pé e gastaram energia”
— Léa dos Santos Nascimento
Entre tradições antigas e resistência
A beleza das tranças está além do código estético, ela se relaciona com a ancestralidade e (re)afirmação. As tranças revelam uma herança de resistência, uma marca registrada que a população negra carrega até hoje, atualmente, com maior voz na sociedade. Léa contou que, no período da escravidão, as tranças eram utilizadas para armazenar sementes e arroz, para garantir que, mesmo quando os escravizados fossem levados para outros lugares, ainda sim conseguissem ter alimento para seus familiares.
“Muitas vezes, as tranças nagô foram usadas também como um mapa de rota de fuga. O design das tranças dizia um pouco sobre o rumo que eles iam tomar, sobre qual direção ir, quando eles conseguiam fugir”, completou a trancista, afirmando que a técnica da nagô representa tradições de famílias. O caráter afetivo, familiar e de pertencimento das tranças compõem a atmosfera ancestral dessas.
Com o reconhecimento legal da profissão, essas mulheres tornam-se protagonistas e líderes em suas comunidades. As periferias foram o cenário de surgimento e popularização das tranças, tanto que projetos como Trançado Periférico, Entrelaçando Histórias e Rendas e Tranças que Transformam atuam nas periferias de São Paulo levando cursos, qualificação e identificação às mulheres que residem nas regiões.
Léa ressaltou a importância da existência de projetos gratuitos para que o público mais novo também tenha acesso às tranças. Segundo a trancista, “muitas adolescentes e crianças alisam o cabelo muito cedo”, então, para incentivar a autoestima das jovens negras, a difusão do conhecimento das técnicas de tranças é essencial.
“A trança é uma herança dada, eu acredito que já está no sangue e no DNA. Nós temos que dividi-la, compartilhá-la com a próxima geração, nossas filhas, sobrinhas, amigas”
— Léa dos Santos Nascimento
A herança por trás das tranças “é uma virtude”, de acordo com a trancista. “Fazer tranças é uma herança muito rica e vai além de valores. Não é um serviço barato, porque envolve o manual, mas não é só isso. É uma riqueza de detalhes, é uma riqueza de transformação que só quem usa a trança pode dizer o quão bonito é”, admitiu Léa. O legado deste conhecimento envolve ancestralidade, resistência, autoestima e exalta a potencialidade da cultura negra.
