Moda como ferramenta política de inclusão
As estilistas Vicenta Perrotta e Guma Joana abrem o caminho para outras pessoas trans iniciarem na costura, como a marca INFLAMA, da Kauan
Por Beatriz Hadler, Clara Hanek e Thamires Aguiar
![Colagem de algumas das peças desfiladas da última coleção de Guma Joana, "D3SD1T4 07: F3R4Z", na Casa de Criadores. [Imagem: Reprodução/Agência Fotosite]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/09/Foto-1-moda--300x200.jpg)
De acordo com dados levantados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% da população transexual e travesti tem a prostituição como fonte de renda. Esse cenário se dá pela transfobia dentro do mercado de trabalho, a qual predomina exceto quando a dita inclusão é cobrada em um formato publicitário.
Vicenta Perrotta, estilista, artista, educadora e ativista fundou, em 2013, o Ateliê TRANSmoras, uma associação sem fins lucrativos que promove mudanças sociais e direitos de pessoas trans através da arte. Mais que locais de educação e produção de moda, os ateliês — atualmente em Campinas e no Centro Cultural de São Paulo — são espaços de expressões artísticas e resistência.
“Cada pessoa carrega o seu bioma, cada pessoa carrega a sua subjetividade, cada pessoa carrega o seu sujeito, carrega a sua história, a sua memória e as suas vivências”
Vicenta Perrotta
Há alguns cursos voltados para pessoas trans no ramo da moda. Esses possibilitam capacitação e são uma boa alternativa aos trabalhos muitas vezes degradantes a que essas pessoas são expostas. Por exemplo, a oficina de Transmutação Têxtil – que é uma técnica de produção de peças por meio da reutilização de materiais descartados –, idealizada por Vicenta.
A partir do aprendizado dessa tecnologia, pessoas trans podem encontrar autonomia e independência no processo de criação da moda. Além de possibilitar a mudança na realidade desfavorável de exclusão, a educação libertadora muda a própria sociedade e como essa enxerga os corpos dissidentes.
“Eu uso a moda como uma plataforma para construir política pública”
Vicenta Perrotta
Kauan, idealizadora da marca recém-criada INFLAMA, conta sobre sua experiência ao adentrar o processo de se sustentar como estilista e do desenvolvimento da marca: “INFLAMA é uma expressão, como a moda é para mim”. De acordo com a jovem, ela via a moda como um lugar inatingível, mas agora que conhece pessoas iguais a ela, vê a moda como nunca antes, uma possibilidade de alcançar muitos lugares e fazer o que gosta de criar e ver.
Para ela, a costura foi a chave para começar a se sentir bem com o que veste, independente de ser dita como feminina ou masculina. Ao criar uma roupa, Kauan quer representar algo de dentro para fora e diz ser mais fácil se expressar dessa maneira — ela modifica a peça como um meio para ser vista, mas conclui que isso é um processo e que ainda está nela. A sua arte arde e inflama os seus sentimentos para que o mundo a enxergue.
![Fotos do lançamento da marca Inflama, da Kauan. [Imagem: Thamires Aguiar/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/09/Foto-2-moda-258x300.jpg)
A caminho de sua oitava coleção, a artista e designer Guma Joana relata sua trajetória no mundo da moda. Quando trabalhava com dança e performance entrou em contato com um coletivo de teatro, no qual passou um mês fazendo residência artística. Durante esse período, reuniu resíduos e elaborou figurinos com eles.
Guma conta que o resultado desse projeto trouxe vontade de criar mais roupas, o que a levou a produzir seis visuais modelados por pessoas trans – compondo a sua primeira coleção D3SD1T4 01. Depois de trocas e aprendizados, ela formou sua marca e entrou na Casa dos Criadores. Além de administrar seu ateliê, também dá aulas de cenografia e figurinos na São Paulo Escola de Dança e realiza outros trabalhos para garantir seu ‘acué’, seu sustento.
A Casa de Criadores é um projeto fundado em 1997, inicialmente para estilistas lançarem suas novas coleções. Com a intenção de democratizar o estudo e a pesquisa cultural, a organização sem fins lucrativos promove cursos e oficinas gratuitos. Através do ensino que abrange os corpos oprimidos, o projeto cria pertencimento – as pessoas não devem ser incluídas artificialmente como muitas vezes acontece nas grandes marcas, e sim pertencer e ocupar de fato. A ocupação de pessoas trans nesses espaços culturais e educativos, antes hegemônicos, é essencial para garantir a inclusão em todos os âmbitos da sociedade.
Criar e ressignificar
Ao explicar seu processo criativo, Guma Joana diz que cria com base na sua sede de transformação. “Quando estou muito ansiosa, questionando meu trabalho, eu vou para o manequim e desconto tudo ali, crio”, compartilha. Ela também ressalta a importância de colaborações com outras artistas, algo que traz inspiração e vida para seus trabalhos. Na mesma onda, Kauan expõe sua vontade de criar a partir do que sente e do que vive, mas contando com a participação e colaboração entre as vivências de todas as pessoas envolvidas em seus projetos.
“Trabalhar com outras pessoas que também estão nessa luta me faz perceber que o que estamos fazendo é moda”
Kauan
![Fotos do lançamento da marca INFLAMA, da Kauan. [Imagem: Thamires Aguiar/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/09/Foto-3-moda--300x169.jpg)
Vicenta Perrotta, pioneira no processo de Transmutação Têxtil, diz: “É sobre pegar os retalhos, as roupas que já foram feitas, e recriar. Com esses recortes, crio corpos que existem de fato”. Assim, ela constrói peças únicas que fogem do esvaziamento da produção em série, mas não com o propósito de criar uma exclusividade que exclui – Vicenta inclui e pensa na existência de subjetividades.
Já que o lixo é um material que não precisa ser comprado, essa forma de fazer moda se torna um processo autônomo, que se sustenta em si mesmo, e também permite entender e respeitar o ciclo natural das coisas.
Adepta ao slow fashion (moda lenta, em tradução livre), Guma Joana também seleciona objetos que seriam descartados para suas criações. “Quase 100% do material artístico que trazemos nos desfiles são roupas que seriam abandonadas. São tecidos, metais, plásticos que virariam lixo”, relata.
Para ela, esse processo de desconstrução e reconstrução vai além das coleções produzidas, porque as existências trans também são vistas como sinônimo de abandono, de descarte, apesar de estarem presentes na sociedade. Ressignificar os materiais também é repensar ‘corpas’ (termo utilizado pela comunidade) e memórias dessa população invisibilizada.
Uma experiência nas oficinas da Casa dos Criadores levou Kauan a refletir sobre a moda que constrói na sua marca. “A nossa moda feita com lixo é vista como não formal, mas ela tem que ser tratada assim, jogada? A gente não tem valor como com o que a gente está trabalhando?”, expõe.
Ocupar para transformar
A moda surgiu e permanece um mecanismo de divisão de classes, no qual, historicamente, se define o espaço ocupado na sociedade e o modo de comportamento a partir da vestimenta. No embate pelo acolhimento de corpos dissidentes – como pessoas trans, PCDs (pessoas com deficiência) e pessoas gordas – excluídas pela sociedade e pela moda, há um movimento cada vez maior de abrir espaço para sua inserção em todas as fases da produção das peças. Com a presença dessas pessoas no processo criativo, no styling, no casting, nos bastidores e nas passarelas, ocorre uma quebra no sistema.
Através da autonomia e da criação dos próprios projetos e marcas, pessoas trans são contempladas por roupas que abraçam suas existências e identidades. Isso vai além: elas são usadas como mecanismo para a produção de imagens que transformam e influenciam o pensamento e a visão social de seus corpos. “Quero criar imagens que, através da moda, consigam transgredir o que já foi definido”, explica Guma.
![Fotos do lançamento da marca Inflama, da Kauan. [Imagem: Thamires Aguiar/Central Periférica]](https://centralperiferica.eca.usp.br/wp-content/uploads/2024/09/Foto-4-moda--195x300.jpg)