Galeria de arte a céu aberto movimenta São Mateus e traz novo olhar para a cultura urbana periférica de São Paulo

 

Com mais de 15 anos de história e três quilômetros de extensão, a favela galeria dá vida e cor às ruas da Vila Flávia, Zona leste da cidade

 

Por Fernanda Franco e Samuel Amaral

 

Grafites colorem paredes, portões e vielas no extremo leste de São Paulo. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
Grafites colorem paredes, portões e vielas no extremo leste de São Paulo. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

As paredes coloridas e a agitação cultural chamam a atenção de quem passa pelo bairro Vila Flávia em São Mateus, na Zona Leste da capital paulista, onde mais de três quilômetros de grafite decoram as ruas e vielas. A Galeria de Arte a Céu Aberto atrai artistas urbanos de São Paulo, do Brasil e do mundo para produzirem obras e deixarem suas assinaturas no famoso bairro. 

 

Iniciada em 2009 por um grupo de jovens grafiteiros, o desejo de mudar a estética da favela onde vivem virou prática cultural no local, que hoje conta com ruas inteiras marcadas pela arte e projetos que cobrem casas e comércios da região. 

 

“Normalmente nas periferias as cores que predominam são o cinza ou o vermelho do tijolo. Mas quando tem essas obras, o ambiente se torna muito mais vívido. Mexe com a autoestima dos moradores”, conta o morador Wesley Cassimiro, que começou a reparar na importância das cores dentro do bairro após começar a frequentar o centro da cidade por causa dos estudos. “Há uma diferença absurda na paisagem ao passar por áreas grafitadas e por outras que não são em São Mateus”, complementa.

 

Casas e comércio grafitados na Vila Flávia. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
Casas e comércio grafitados na Vila Flávia. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

“São Mateus inteiro respira arte, a música e o grafite estão na nossa raiz”. É assim que MC Negotinho, nome artístico de Fernando Carvalho, artista e presidente da São Mateus em Movimento, define o lugar em que vive e onde atua com seu projeto social. Chamado por ele de ‘universidade cultural’, a entidade é uma das iniciativas que surgiram nas últimas duas décadas com a popularização dos grafites e da música produzida na comunidade; com o foco de transformar a vida dos jovens da Zona Leste e materializar as letras e símbolos do hip-hop por meio de ações pedagógicas e artísticas.

 

A popularização da arte produzida na região começou com o grupo de rap De Menos Crime, com a música Fogo Na Bomba que se tornou famosa no cenário nacional no final dos anos 1990. A partir de então, surgiu o grupo OPNI (Objetos Pixadores Não Identificados) com 20 garotos da periferia que faziam grafites e tinham o objetivo de mudar o espaço ao seu redor. O grupo fez tanto sucesso que dois de seus fundadores, Val e Toddy, foram chamados para a comemoração dos 50 anos do hip hop em Nova Orleans, nos EUA.

 

“Antigamente era um ar muito triste, a rua toda suja, lixo para tudo quanto é lado, entulho, uma tristeza só. Era sair de casa e se deparar com a tristeza. Por isso que a gente veio trabalhando nessas premissas: o futuro, a educação e a transformação do território para uma melhor qualidade de vida”

MC Negotinho

 

“Estamos conseguindo conquistas através da arte”, diz MC Negotinho ao contar dos seus planos e lutas para a Vila Flávia. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
“Estamos conseguindo conquistas através da arte”, diz MC Negotinho ao contar dos seus planos e lutas para a Vila Flávia. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

Com o passar do tempo, São Mateus cresceu potencialmente junto com os projetos sociais iniciados por Negotinho, mas como ele costuma dizer: “ainda tem muito corre pela frente”.  No que diz respeito à galeria, a questão da visibilidade ainda é um problema – tanto vindo de fora, como partindo de dentro da comunidade. Atualmente, há tours semanais pela Vila Flávia para promover a favela galeria. 

 

“As pessoas têm que ver mais a galeria porque é muito mais impactante a obra aqui dentro da favela. O grafite você já vê na cidade de São Paulo para tudo quanto é lado, mas quando ele é uma prática transformadora, como é aqui dentro, tem que ser mostrado.”

MC Negotinho

 

Como exemplo dessa transformação, Wesley menciona a participação que o primo teve, ainda criança, na pintura de um muro na Vila Flávia. “Isso vai se refletir no futuro, porque essa memória de que pintou tal parede faz parte da história de onde ele viveu, ele começa a se ver naquele lugar”, acrescenta. O morador também acredita que é divulgando projetos sociais como esse que se quebrará a visão preconceituosa de que na periferia só existe violência.

 

Grafite na sede da Favela Galeria. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
Grafite na sede da Favela Galeria. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

No cotidiano, é fato que a arte rodeia os moradores de São Mateus, seja no caminho para a faculdade ou trabalho e até mesmo a passeio. Porém, ainda é comum que eles não percebam isso, como observa a moradora Giovanna Ribeiro. 

 

Ela, por exemplo, não tinha conhecimento da galeria antes da reportagem, mas recorda que no caminho até a estação ou quando está dentro do ônibus repara em muitos grafites nas paredes. “Não sabia que faziam parte de uma galeria, de uma exposição de arte a céu aberto”, comenta. Giovanna relata que gosta bastante da arte de rua, especialmente quando mobiliza adolescentes – como quando alunos da rede pública a se juntaram para pintar a parede externa de uma escola perto de sua casa. 

 

Além disso, conta que na parte em que mora há muitos muros de terrenos baldios que poderiam ser usados para fins artísticos, como o grafite. Nas calçadas desses muros há grande acúmulo de lixo e entulho. Ela acredita que com a arte esse problema poderia ser resolvido, pois pode mobilizar os moradores do entorno. “Daria uma outra cara ao local, mais feliz e alegre, porque as pessoas passam por lá todo dia. Então seria importante uma revitalização desses espaços, mesmo que apenas por fora”, conclui.

 

Como as obras são feitas e expostas? 

 

Os grafites são feitos em paredes, muros e até portões escolhidos pelos artistas, desde que o dono ou morador permita. Após a aceitação, o suporte pode ser preparado para receber a obra, no caso das paredes, elas precisam estar lisas e bem pintadas. Depois, a liberdade criativa é quem toma as rédeas do projeto e a assinatura do artista está justamente em sua capacidade de inovar e trazer por meio do grafite um novo rosto para a comunidade.

 

Paredes sem acabamento prévio também são alvos dos grafiteiros por colaborarem com a decoração do espaço. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
Paredes sem acabamento prévio também são alvos dos grafiteiros por colaborarem com a decoração do espaço. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

Negotinho explica que as paredes de tijolo aparente são as mais buscadas – tanto pela curadoria do projeto como pelos artistas. É uma forma do material da arte ajudar na decoração e na complementação de uma casa que ficaria inacabada, mas que agora ganha vida para além de uma parede monocromática. Quando não é possível fazer o grafite, por falta de investimento, ele diz que a ideia é pelo menos colorir os tijolos expostos – uma das imagens características das favelas que os artistas tentam mudar. 

 

As cores vibrantes dos grafites dão vida às casas de São Mateus. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
As cores vibrantes dos grafites dão vida às casas de São Mateus. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

Porém, nem todas as circunstâncias são favoráveis aos grafiteiros, em alguns casos o morador não gosta do resultado e é necessário negociar. A solução encontrada pelos artistas e organizadores é a de tentar convencer o dono do muro a deixar a obra exposta por pelo menos algumas semanas para depois ser apagada ou substituída conforme o gosto do proprietário. Normalmente desenhos de plantas e animais são a alternativa por serem mais neutros e menos polêmicos. 

 

Mesmo com poucas insatisfações, Negotinho relata que quanto mais o nome da Favela Galeria se populariza e os moradores se veem na mídia, maior importância é dada ao cuidado com as obras por parte deles. Atualmente, os grupos são mais requisitados do que pedem permissão para pintar. “Os moradores que vêm procurar a gente, ficam na espera pela produção dos grafites nas suas casas”, explica ele. Os moradores passam a interagir com a arte quando se identificam com as figuras pintadas.

 

Grafite de criança com síndrome de down e o símbolo do autismo foi solicitado por moradora em respeito a parentes que possuem esses diagnósticos. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]
Grafite de criança com síndrome de down e o símbolo do autismo foi solicitado por moradora em respeito a parentes que possuem esses diagnósticos. [Imagem: Samuel Amaral/Central Periférica]

 

Quem paga pelas obras?

 

Apesar da alta demanda e oferta de artistas e projetos, a falta de investimentos atrasa a pintura das paredes e, por consequência, a expansão da galeria. Custear os grafites, especialmente em grandes paredes, vai além do orçamento das entidades, dos artistas e dos organizadores. Por isso, eles dependem do investimento de patrocinadores ou de projetos governamentais de incentivo à arte urbana – como o edital MAR (Museu de Arte de Rua).

 

O edital abre inscrições anualmente e é promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, ele tem como foco a arte urbana de rua principalmente em áreas periféricas da cidade. A edição de 2023 contemplou 60 obras e neste ano o recurso é de 3 milhões de reais. Essa é a política de fomento que mais influencia a Favela Galeria, financiando dos insumos aos cachês dos artistas das obras contempladas até a sua finalização. Contudo, a necessidade de inscrição todos os anos e a falta de políticas de preservação e restauração das obras são as principais reclamações por parte dos grafiteiros e movimentos sociais de São Mateus.

 

Em entrevista ao Portal Central Periférica, Salete Perroni, chefe de núcleo da Coordenadoria de Programação da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, explica que o edital prevê em sua constituição uma rotatividade de artistas todos os anos, independentemente da região em que a obra será contemplada, e que o projeto não possui vínculo direto com nenhum movimento ou grupo de artistas. Nesse sentido, ela aconselha que os artistas busquem igualmente por outros editais e projetos públicos de incentivo que abarquem a arte urbana.

 

“Há interesse, intenção e um movimento interno da Secretaria de Cultura de continuar cada vez mais fomentando a arte urbana, mas existem outros locais de fomento também”

Salete Perroni

Segundo ela, o preço da manutenção é o mesmo de uma obra nova e de um novo artista que pode ser fomentado. “Não há nenhum recurso disponível para manutenção, revitalização ou restauração do ponto de vista de uma obra que já está pronta mas que sofreu intempéries e desgaste ao longo do tempo, característica intrínseca delas”, diz Salete. 

 

Ela ressalta que o objetivo do projeto MAR é “reconhecer e dar visibilidade à arte urbana, fomentando artistas dessa linguagem” e, até o presente momento, não há nenhum recurso disponível para a restauração e nem um setor responsável para isso. Em suas palavras, “não impede que os grupos, a sociedade ou os próprios artistas urbanos se organizem em torno dessa temática para pleitear isso de alguma forma”. 

 

Desafios da galeria

 

Além da falta de investimento constante, um dos grandes desafios continua sendo o desconhecimento da população – seja de São Mateus ou não – sobre a galeria a céu aberto e o que ela representa. Tanto Giovanna quanto Wesley relatam que as pessoas de seu círculo social não conhecem os grafites e que alguns sequer sabem onde fica São Mateus –  mesmo que a região tenha ficado mais acessível com a construção do monotrilho Linha 15-Prata. 

 

Região de São Mateus. [Mapa: Janaina Nogueira/Central Periférica]
Região de São Mateus. [Mapa: Janaina Nogueira/Central Periférica]

 

Para Wesley, o principal motivo desse desconhecimento não é a distância, e sim por não ser tão comentado. “O conhecimento de arte é muito pouco aqui. Falta entender a importância da galeria, pois ela dá uma abertura sobre o que é a arte”, diz ele, e reforça que essa visibilidade é ainda mais necessária para as crianças da região por permití-las “pensar sobre arte de uma forma mais compacta e palpável porque está vendo aquilo direto, na sua frente”. 

 

Para Giovanna, o desafio está em fazer com que os moradores enxerguem o grafite como movimento artístico. “A gente normalmente acha que para conhecer arte você precisa ir ao MASP, no centro da cidade. As pessoas que moram em São Mateus não conseguem ter essa valorização justamente por se enxergarem da periferia”, comenta.

 

Ela acredita que além das escolas e movimentos sociais, os Sescs, Céus e as Fábricas de Cultura têm um papel importante na formação e instrução das pessoas que moram em bairros periféricos por disponibilizarem mais o acesso a cultura, sendo fundamental para o reconhecimento da arte dentro da favela, mesmo que a princípio atinjam mais os jovens. Vale ressaltar que na região de São Mateus não há nenhum Sesc, Céu ou Fábrica de Cultura. 

 

Para participar dos tours pela Vila Flávia, uma visita guiada pelas principais obras expostas, basta fazer um agendamento por meio dos perfis do instagram @favelagaleria ou @saomateusemmovimento.