Empinar pipas é mais do que uma brincadeira, é uma expressão cultural que encanta gerações

Da infância à vida adulta, é um momento de descanso e relaxamento para os amantes dessa arte. “Não é a mesma coisa se eu ficar um final de semana sem empinar pipa”, declara um deles

As pipas são o compromisso obrigatório de cada final de semana do grupo e de outros amigos. Da esquerda para a direita: Thamires, Guilherme, Rafael, Vinicius, William, Valter e Jeferson [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]

Brincadeira de criança / Como é bom, como é bom / Guardo ainda na lembrança / Como é bom, como é bom / Paz, amor e esperança. Os versos da canção Brincadeira de Criança – do grupo Molejo – expressam toda a saudade de ser criança. Sentimento que cresce com o cotidiano da vida adulta, em meio as suas obrigações e responsabilidades.

A faixa etária não impede que a sua ‘criança interior’ apareça. Compartilhar brincadeiras de décadas passadas, hoje, é visto como uma tradição entre famílias e amigos. Esse resgate das memórias infantis une gerações e passa a ser mais do que uma brincadeira, para praticantes se torna uma identidade.

Amor à primeira cortada  

Os irmãos William e Guilherme Viana empinam pipas há 30 anos. A paixão cresceu pelo incentivo do seu tio Valter Domingues que – com mais de 50 anos de experiência na atividade – os acompanha nas ‘cortadas’ feitas na laje da avó dos meninos. A cada fim de semana ou festival que colocavam suas pipas no ar, os irmãos faziam novas amizades e as traziam para o ciclo dos ‘pipeiros’, como os entusiastas Jefferson Gomes e Rafael Fonseca. 

Para as duas gerações, uma sensação oficializou o afeto pela brincadeira: a adrenalina. William afirma que, no início, o encanto partiu das cores e dos desenhos que observava nas pipas, mas quando cresceu – assim como declaram Guilherme, Rafael, Jefferson e Valter -, a empolgação de se cortar a linha da pipa de um amigo se tornou maior. “Prazer da adrenalina de cortar um ao outro”, diz Jefferson.

Vista da laje da casa da avó dos irmãos Viana, lugar onde família e amigos marcam presença para colocarem suas pipas no alto. [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]

Em entrevista, o quarteto de amigos disse que nunca participaram de competições, mas vão em peso aos festivais, que ocorrem pelo menos uma vez ao mês. O último foi na cidade de Sorocaba, em meio a um canavial. A reclusão do local, segundo eles, se deve ao cuidado que os pipeiros têm para não machucarem a si mesmos nem a terceiros. “Tudo na brincadeira, nada na confusão para todo mundo acabar se divertindo”, declara Guilherme.

Uma herança de família

Empinar pipas se tornou “uma tradição de família, um vai passando para o outro”, afirma Thamires Peres, esposa de Guilherme e mais uma fã da atividade. Seja de tio para sobrinhos ou de pai para filho, a ‘arte de empinar pipas’ se tornou uma herança. 

Já adulto, Valter presenteava os irmãos Viana com carretéis, linhas e pipas. E o incentivo dado pelo tio foi transmitido para Vinícius – filho de Guilherme e Thamires, afilhado de William. O pequeno pipeiro conta os dias para empinar com o pai e com o padrinho, conta a sua mãe. O gosto pela cultura já veio de berço – ou melhor, da barriga: o ‘chá de bebê’, organizado para o nascimento de Vinícius, teve as pipas como temática da festa. E prestes a se tornar irmão mais velho, Vini percebeu que o caçula, que se chamará Lucas, também não escapou do fascínio do pai: para revelar o sexo do bebê à família, Guilherme pediu aos amigos que o fizesse por uma pipa e assim foi feito. William, Jefferson, Rafael e outros amigos e parentes soltaram uma pipa azul para anunciar a vinda de Lucas. 

Os filhos de Jefferson também não ficaram imunes à ‘paixão pipeira’. Para o pai, passar a cultura para eles – André e Enzo – vai além de mostrar como eram as brincadeiras em uma época antes da internet, é um “momento de estar próximo dos meus filhos”, relata.

O chá de bebê de Vinícius foi decorado com pipas. Antes de andar, o menino já começou a empinar com o seu pai.  [Imagem: Thamires Peres/Acervo Pessoal]

Guilherme carrega na pele um momento dele com seu filho, Vinícius, brincando com pipas [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]

Um bom pipeiro à pipa retorna

Praticar a mesma atividade por décadas pode parecer exaustivo para muitas pessoas, mas não para os apaixonados por pipas. “Nunca parei [de empinar], afirma Rafael – autodeclarado um ‘pipeiro das antigas’.

As responsabilidades, o trabalho e a correria do dia a dia forçaram William, Jefferson e Valter a darem um tempo à prática. De acordo com eles, a pausa da atividade foi por aproximadamente 15 anos e voltou com maior força durante a pandemia da covid-19. Em um momento de isolamento social e estresse – como ocorreu em 2020 e 2021 –, empinar pipas foi o momento que os entrevistados encontraram para se dissociarem.

A cultura pipeira não se limita ao momento de colocar as pipas no céu. Para William, a atividade é um ritual. Há 26 anos ele produz as próprias pipas, “não gosto de comprar”, diz. Ele não é o único, todos do grupo afirmaram já terem se aventurado no complexo ofício de se fazer a própria arte através da pipa, trata-se de uma terapia para eles, um momento em que podem resgatar os seus ‘meninos interiores’.

William gosta de passar ‘horas e horas’ produzindo os próprios pipas. Para ele, o melhor momento é poder os colocar no céu, mostrar para os amigos e ser elogiado pelo seu trabalho [Imagem: William Viana/Acervo Pessoal]

Passado, presente e futuro pelos ares

Três gerações: Valter, a primeira; Thamires, Guilherme, William, Jefferson e Rafael, a segunda; por fim, Vinícius, a terceira. A arte de empinar pipas não se manteve imutável, entre os anos que se passaram, as eternas crianças declaram ter percebido muitas diferenças.

Com seis anos, Vinicius gosta de empinar pipa e influencia a sua mãe a participar, colocar pipas no alto e correr atrás das que foram cortadas [Imagem: Júlia Sardinha/Central Periférica]

“Na época, era muito difícil conseguir um carretel de linha”, relembra Valter sobre a sua infância. Hoje, a primeira geração dos pipeiros enxerga que da brincadeira, a pipa formou uma indústria com fabricantes e automatizações – como o uso do aplicativo Windy para controlar a direção das pipas com base na velocidade do vento. E a tecnologia não influenciou somente nesse aspecto, Jefferson e Rafael disseram que ver crianças empinando, hoje, é muito difícil porque a tecnologia, as telas e os videogames as encantam de forma mais rápida.

Nos dias atuais, todos concordam com a importância de a fiscalização ser mais exigente. De acordo com Guilherme, muitos dos festivais que o grupo participa não são divulgados nas redes sociais. Os organizadores desses eventos buscam evitar lotações e tumultos para que, em meio às linhas, ninguém saia ferido. Seja nas ruas, nos terrenos abertos ou nas lajes, empinar pipas é uma cultura que encanta todas as idades. Para tornar a prática mais segura e acessível, Jefferson aponta a necessidade de “hoje em dia ter um espaço próprio, cultural, para ter o lazer de empinar, onde não tenha fiação nem pessoas que possam se machucar”

O lazer de Guilherme, William, Jefferson e Rafael era jogar bola, pião, bolinha de gude e pipa em uma época em que não tinha celular nem computador. Nessa época, a rua era a diversão dos meninos, onde podiam brincar o dia inteiro [Imagem: Guilherme Viana/Acervo Pessoal]