Eduarda Aguiar: a dançarina que virou documentário

Responsável por levar a arte para a comunidade do Jardim Elba, a trajetória de Eduarda ganha uma produção cinematográfica produzida pela filha

Registros de Eduarda utilizados na produção do filme [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

Espalhadas sobre a mesa, uma série de fotografias. Em todas, a figura principal é a de uma jovem em roupas de dança, estonteantes de tão coloridas. Os registros foram trazidos pela mulher que as revê. Inteira de preto, blusa e calça, seria difícil acreditar que Natássia Aguiar Vitale é filha daquela dançarina das fotos, não fosse o rosto quase idêntico ao da mãe. É difícil acreditar, também, que depois de anos como bailarina na televisão, administrando uma academia de dança e sendo símbolo feminino dentro da comunidade do Jardim Elba, em Santo André, Eduarda Aguiar — a moça das fotos e mãe de Natássia — passaria seus últimos anos lutando contra um grave quadro depressivo, antes de falecer; vítima de uma parada cardíaca, aos 50 anos de idade.

Apesar do convívio encurtado, Natássia herdou da mãe o fazer artístico — mesmo que manifestado de outra maneira: formou-se em audiovisual pelo SENAC e, desde 2017, trabalha com produção cinematográfica. Antes restrita a áreas mais técnicas, estreará, esse ano, como diretora contando a história de Eduarda: 

O curta-metragem documental nasce de um desafio: contar em até 30 minutos uma vida inteira de dedicação à arte e à comunidade. Nascida em 1960, Eduarda Aguiar começou a fazer sucesso ao integrar o corpo de dançarinas de programas como o ‘Canta Viola’ ou o Clube do Bolinha’, fenômenos na década de 80, que a tornaram mais que uma bailarina: uma referência na comunidade do Jardim Elba.

Em uma área historicamente negligenciada pelos órgãos públicos de cultura e educação, Eduarda transformou a garagem da casa de sua mãe em sua primeira escola de dança, e para algumas meninas, um espaço de mudança de vida. O documentário colheu entrevistas de algumas das alunas da academia de Eduarda, a fim de entender o peso desse lugar na vida dessas meninas e da comunidade inteira: “As meninas mais ligadas ao convívio dela [Eduarda] são, hoje, mulheres mais independentes, resolvidas”, apontou Roselaine Luiz, uma de suas alunas entrevistadas.

Roselaine foi uma das alunas mais longevas da academia de Aguiar. Na foto, segura o registro de uma de suas apresentações [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

A produção aborda, também, aspectos trágicos da vida de Eduarda. Após passar por uma crise financeira, a academia teve de ser fechada; no mesmo período, Eduarda sofreu um aborto espontâneo. Tais acontecimentos resultaram num quadro de transtorno psiquiátrico grave, a ponto de demandar a internação da dançarina durante episódios de crises. A negligência do poder público para com a população periférica também no âmbito da saúde, especialmente a saúde mental, fez com que, até hoje, não se saiba ao certo o diagnóstico de Eduarda — outro ponto explorado pelo documentário.

O falecimento da artista não representou o fim de sua história. Através do curta, Natássia acredita que está, não só iluminando o passado da mãe, mas também mantendo viva sua memória no presente:

Dançarina, amiga, mãe e uma figura inspiradora:

As roupas coloridas e o jeito despojado e indiscreto eram algumas das características que fizeram com que a figura de Eduarda Aguiar se tornasse um símbolo de liberdade e inspiração na comunidade do Jardim Elba. Com pai e mãe trabalhando, desde pequena foi condicionada a ser independente e usou a dança como forma de expressão. Mais tarde, os acessórios e estampas tornaram-se a principal marca da emancipação da dançarina em relação aos estereótipos da época. “Como ela era muito independente, dona de si, era uma mulher empoderada e talvez naquela época nem sabia”, afirma Roselaine, hoje advogada, que acredita que a disciplina foi uma das maiores contribuições de Aguiar em sua vida.

Mais que uma dançarina de tevê, Eduarda era um ícone no Jardim Elba [Imagem: Natássia Vitale/Acervo Pessoal]

“Eu não sei se eu vi ainda um coração tão bondoso quanto o dela” é o que diz a advogada quando questionada sobre como se lembra da “Tia Eduarda”, apelido pelo qual era chamada por suas alunas que, até hoje, guardam memórias de carinho e amizade da professora. A ex-aluna ainda acrescenta que o documentário se torna tão relevante na atualidade por trazer uma pessoa do bem, que influenciou uma geração de meninas até hoje. “Ele [o filme] traz uma mulher transformadora”, afirma.

Para além de uma iniciativa profissional, o documentário coloca-se na vida de Natássia como um projeto pessoal, que traz consigo uma significativa carga emotiva. Nascida e criada na academia de Eduarda no Jardim Elba, a cineasta conta que a produção se trata, também, de uma tentativa de reencontrar a mãe e a si mesma: 

Lei Paulo Gustavo:

Ao possibilitar a existência do documentário, a lei tira das margens projetos regionais que não se auto financiam, criando uma cadeia produtiva que gera emprego e circula capital, como pontuou Natássia: [A lei Paulo Gustavo] é uma forma de voltar a movimentar a arte nas cidades. Porque foram áreas muito atingidas pela pandemia. Muitas pessoas acreditam que o dinheiro investido nessa área é um dinheiro jogado fora, que ninguém assiste cinema nacional… mas, na verdade, em todas as etapas você está empregando pessoas: tem a pessoa que faz a comida, a pessoa que costura… esse dinheiro está movimentando um montão de áreas que não são enxergadas no primeiro momento”.

A descentralização dos investimentos públicos em cultura, bem como a reserva de cotas obrigatórias (20% dos projetos contemplados devem ser produzidos por pessoas negras; 10% por pessoas indígenas), previstas pela lei, foram as possibilitadoras de trabalhos como o de Natássia. No caso de Santo André, o município recebeu um repasse de, aproximadamente, 5,2 milhões de reais a serem investidos em projetos culturais.

Expansão da cultura periférica

A essência de Eduarda Aguiar pode-se traduzir por uma única palavra: liberdade, que emanava pelas estreitas ruas do Jardim Elba através da dança. A Lei Paulo Gustavo possibilita que essa memória possa ser transmitida pelo documentário desenvolvido por sua filha que, em esperança de reencontrar-se com a figura materna, difunde a cultura periférica pela arte, tal como sua mãe.

Programado para ser finalizado no final de 2024, a produção será exibida em festivais em Santo André e em algumas unidades de CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), já que a produção enfatiza, também, questões psicológicas que cercavam a protagonista.

Natássia, à direita, e Roselaine voltam ao Teatro Municipal de Santo André, onde Eduarda montou vários projetos [Imagem: Vito Santos/Central Periférica]

O projeto coloca-se como enunciador de uma história que inspirou diversas mulheres periféricas a irem além dos papéis que eram socialmente convencionados. Ele busca hoje, entre outras coisas, levar a independência e o empoderamento de Eduarda para novas gerações.