A fome da literatura periférica e a conquista de novos espaços
Autores do livro De Bala em Prosa discorrem sobre a magnitude da representação racializada e periférica
27/04/2024
Aline Fernandes e Ana Alice Coelho

[Imagem: Vito Santos/Central Periférica]
Liège Santos e Douglas Barros são escritores do livro “De Bala em Prosa: Vozes de resistência ao genocídio negro” que denuncia de múltiplas formas as vozes da resistência ao chamado genocídio negro histórico do Brasil.
Através de lutas sociais, a literatura periférica obteve maior visibilidade para os novos escritores, mas fato é que o perfil do público passou por intensas mudanças, o que faz questionar para quais direções esses novos caminhos guiaram e estão guiando a relação entre os leitores e os autores periféricos.
“Quando eu comecei a escrever já havia um público faminto pelas suas próprias histórias.”
Liège Santos é escritora e pesquisadora do “Laboratório de Estudos em Cultura e Religiosidades”, além de ser autora do quarto texto do livro “De Bala em Prosa: Vozes de resistência ao genocidio negro” intitulado de “Corde Pulsum Tangite”. Para ela, a busca constante por textos periféricos não é atual, porque os grupos marginalizados sempre buscaram essa sensação de pertencimento por meio da literatura, seja como escritores ou leitores, já que durante muito tempo foram excluídos desse espaço simbólico e físico de produção intelectual.
“É necessário que a periferia fale e tenha orgulho de contar suas próprias histórias, porque são elas que podem recompor o orgulho de uma memória que é vitoriosa.”
Apesar disso, a escritora carioca salienta que essa relação tem passado por mudanças visíveis no que se refere, especialmente, a forma que a escrita é exposta ao público. “Acho que as posições estão se movimentando, é esse leitor que não quer ser tão inerte, esse escritor e produtor do conteúdo que quer estar mais perto e ser mais instantâneo”, afirma Liège e logo após completa, “O leitor e o escritor vivem um jogo de afastamento e proximidade, vivem uma espreita e essas posições estão se alterando”.
Para a autora esse futuro incerto e curioso está próximo, uma vez que, nos próximos anos, os hábitos de leitura tendem a mudar ainda mais do que já foram no mundo pós-pandemia, algo que poderá causar uma enorme reviravolta no mercado literário, porque a nova tendência será textos cada vez mais curtos, instantâneos e de fácil acesso aos leitores. Porém esse novo cenário não deve assustar os escritores, mas estimulá-los a aproveitá-lo para expor ainda mais a história de um povo que foi invisibilizado por séculos. “Cada vez que um corpo vulnerável produz a história, ele muda a perspectiva”, estimula Liège.
Se nada somos, sejamos tudo!
Douglas Rodrigues Barro, psicanalista e doutor em Ética e Filosofia Política pela Unifesp, é autor do texto “Se nada somos, sejamos tudo”, décimo quarto capítulo do livro . Em entrevista à Central Periférica, o escritor afirma que o perfil universitário brasileiro mudou. Com a diversificação do público acadêmico, a reivindicação pela representação periférica no ambiente escolar se fortaleceu, alterando as estruturas dos ambientes de ensino. “Esses estudantes começaram a questionar de forma cada vez mais profunda a falta de escritores negros e periféricos nesse cânone. Cada vez mais tem-se um olhar mais sensível para esses escritores racializados”, completa Douglas.
Para o autor, é indispensável que o corpo negro e periférico se veja representado, pois é ao se ver retratado que o preterido se afirma de forma identitária e se traduz como pessoa. “Esse país é culturalmente negro. Toda a produção cultural brasileira, desde o esporte até a literatura e música, tudo que esse país melhor produziu é negro. Esse país foi feito por mãos escravas. O problema é que nós mantivemos uma estrutura imaginária colonial que obliterou a história daqueles que construíram esse país”.
Não se trata só de ser enquadrado no mercado, se trata na verdade de transformar de maneira substancial a própria noção do que é ser um racializado”, declara Douglas.
O escritor de Nova Olinda/CE acredita fortemente que todos devem ter o direito de ter acesso a obras literárias mais complexas, apontando que o discurso de acesso à leitura que pressupõe o grau de capacidade de interpretação do seu público receptor atrasa o desenvolvimento de uma literatura mais inclusiva. “É preciso reduzir a complexidade de um tema porque se presume que as pessoas que são o alvo desse tópico não irão entender se o conteúdo for desenvolvido de maneira muito complexa. Mas o racismo é uma questão complexa. Eu quero que o meu leitor, apesar de pegar o trem muitas vezes lotado, consiga entender o complexo como eu entendo”.
Vislumbres de um futuro
Ao ser perguntado sobre sua mensagem ao público, Douglas é assertivo em dizer que “há um outro mundo a ser construído e ele só vai ser construído a partir do momento em que aquelas vozes que foram sufocadas durante a história desse país passem a ser ouvidas. Inclinem os ouvidos para essas vozes que foram silenciadas e fiquem atentos, pois são dessas vozes que podem sair respostas possíveis ao drama que estamos vivendo no século XXI.”
O Livro “De Bala em Prosa: Vozes de resistência ao genocídio negro” é de acesso gratuito a todos em formato e-book pelo aplicativo kindle, e pode ser obtido clicando aqui.