O que dificulta o acesso à hormonização na periferia?

Serviço é precário na rede pública e desconsidera a diversidade de gênero

Por Alex Teruel, Gabriel Alegreti, Rafael Dourador

[Imagem: Reprodução/Mídia Ninja]
[Imagem: Reprodução/Mídia Ninja]

A hormonioterapia é um procedimento buscado por muitas pessoas transgênero, que proporciona a possibilidade de alinhar características físicas com a identidade de gênero na qual a pessoa se identifica.

No entanto, diversas barreiras como fatores socioeconômicos, preconceitos e falta de infraestrutura adequada afetam o acesso de pessoas trans periféricas a essa e outras intervenções médicas que integram o processo transexualizador, garantido pelo Ministério da Saúde desde 2008.

Para Charles Ferreira, hormonizado pelo SUS há 2 anos, o maior desafio na rede pública é o agendamento de consultas. “Eu faço o atendimento numa UBS e está sempre faltando médico”, diz ele.

Outro problema apontado por Charles é a falta de informação e preparo dos profissionais. “Toda vez que eu vou injetar a testosterona, eu tenho problemas porque os enfermeiros não entendem como fazer a retirada do remédio. Ou o médico que me atende não sabe me informar nada sobre o tratamento, e eu recebo uma informação diferente cada vez que vou lá”, complementa.

No caso de pessoas não-binárias o acesso é ainda mais estigmatizado. Ari Brabec conta que na época em que cogitava a transição hormonal, a própria comunicação pelo SUS já era excludente. “O SUS é ridiculamente binário, ao ponto que para agendar consulta as opções no menu de cadastramento são apenas ‘mulher cisgenero, homem cisgenero, mulher transgênero, homem transgênero.’”

Mesmo superando essas dificuldades, o acesso ao serviço pelo SUS não é realidade para todos. Gabrielly Rios, que atualmente se hormoniza por conta, relata que inicialmente optou pela consulta com endocrinologista pelo SUS, mas quando descobriu que sua cidade distribuía apenas os bloqueadores de testosterona mas não o estrogênio para reposição, optou por não dar continuidade com as burocracias do processo pelo SUS.

Fora do sistema público, a situação não tem uma melhora tão grande. Charles recorda que quando tentou optar pelo plano de saúde o médico parecia ainda mais despreparado. “Tive a impressão de que ele podia me passar qualquer coisa que ele achasse que me deixasse satisfeito. Então voltei a ir no SUS, onde me sentia um pouco mais seguro”. 

A situação também se repete para Gabrielly, que passou por um atendimento muito superior durante seu período na rede pública. “Os profissionais com que me consultei na rede privada foram bem respeitosos, mas apresentaram uma abordagem de hormonização contraindicada por pesquisas recentes, como doses altas de bloqueadores, doses baixas de estrogênio e indicação de progesterona desde o início da hormonização.”

O custo dos medicamentos hormonais e das consultas com endocrinologista acaba também sendo uma outra barreira para a maioria das pessoas. “Gasto entre 100 e 130 reais por mês, a depender do preço que eu consigo encontrar os medicamentos, além dos custos de exame de sangue que faço por conta para acompanhar meus níveis hormonais, cerca de 150 reais a cada 4 ou 5 meses”, conta Gabrielly.

Como funciona a hormonização para pessoas transgênero no SUS

O processo transexualizador — como é chamado o conjunto de procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal, acompanhamento multiprofissional, entre outros — foi instituído no SUS em 2008, pela Portaria GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto. Esta norma foi substituída e ampliada pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013.

No Brasil, a população trans é assistida por dois componentes: a Atenção Básica – ligada aos cuidados contínuos e contato primário com a rede de saúde, como avaliações médicas, por exemplo, e a Atenção Especializada, que se divide em ambulatorial (acompanhamento clínico e hormonioterapia) e hospitalar (cirurgias para modificação corporal e acompanhamento pré e pós-operatório).

Para ter acesso a estes atendimentos, é preciso solicitar um encaminhamento na unidade de saúde mais próxima de sua casa.

A idade mínima para o hormonioterapias é de 16 anos, enquanto que para procedimentos cirúrgicos é de 18 anos – mediante indicação específica e acompanhamento prévio de dois anos pela equipe multiprofissional que acompanha o paciente no Serviço de Atenção Especializada.

Atualmente, existem 25 estabelecimentos habilitados para processo transexualizador pelo SUS no território brasileiro, sendo 15 ambulatoriais, 2 hospitalares e 8 nas duas modalidades. O Ministério da Saúde ainda ressalta que existem ambulatórios que atendem a população trans mesmo sem estarem habilitados no processo.

Panorama dos tratamentos hormonais para pessoas trans no Brasil 

Entre 2014 e 2023, o Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) registrou um total de 35.103 procedimentos ambulatoriais relacionados à hormonização em território nacional. Esses procedimentos se dividem em duas formas de tratamento:

Tratamento hormonal preparatório para cirurgia de redesignação sexual no processo transexualizador: os pacientes recebem medicamentos hormonais, como a ciproterona, mensalmente durante um período de dois anos antes da cirurgia de redesignação sexual. Foram realizados 6.291 atendimentos nesse tipo de tratamento.

Terapia hormonal no processo transexualizador: Nesse caso, a terapia medicamentosa hormonal (com estrógeno e testosterona) é iniciada após o diagnóstico no processo transexualizador, totalizando 28.812 atendimentos.

O Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), divulgou que entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2024, foram gastos R$4.600.271 em tratamentos hormonais (e outros procedimentos ambulatoriais) em território nacional.